Dizer não

Reprodução parcial da crónica «El que dice no», de An­to­nio Mu­ñoz Mo­li­na, publicada na Babelia de 17 de Maio de 2014.

Há uma beleza própria no gesto daquele que diz não, com calma e firmeza, por vezes com fúria, ou que diz não ao inimigo ou ao déspota que deseja subjugá-lo. E também no que diz não aos que esperavam e confiavam em que dissesse sim, aos próximos, aos seus, aos que se sentirão magoados, quando não traídos, pela sua inesperada negativa. Aos que, talvez depois de o haverem nomeado filho dileto, decidem rebaixá-lo a filho pródigo. Há um não heroico que conduz com toda a certeza ao cativeiro e à morte, e esse é um não que não pode exigir-se a ninguém, porque ninguém está em condições de exigir o que não sabe se ele próprio faria, ainda que existam seres humanos suficientemente mesquinhos para julgar com dureza aqueles que sofreram muito mais que eles.

Uma das vantagens menos celebradas da democracia é que exclui a necessidade do heroísmo na vida pública. Dizer não numa tirania acarreta a desgraça imediata, e não apenas para quem decide não seguir a corrente, mas para todos os que o rodeiam. Os regimes totalitários acreditaram sempre na culpabilidade por parentesco, por contágio. Se a um cidadão soviético acusassem de conspirador ou de inimigo do povo, as consequências pagava-as equanimemente toda a sua família. Num livro que aborda da heroicidade de dizer não, e de dizer não podendo facilmente ter dito sim, o historiador alemão Joachim Fest contava a perseguição a que os seus irmãos e ele próprio se haviam visto submetidos quando o seu pai, um diretor de escola que militava no Partido Católico do Centro, se negou a jurar lealdade ao regime de Hitler. Há formas subtis de integridade que apenas conhecem aqueles que as viveram. Na Alemanha, conta Fest, muitas pessoas que se opunham aos nazis tomavam a precaução, ao sair à rua, de levar as duas mãos ocupadas com algo, e assim tinham uma desculpa para não levantar o braço na saudação obrigatória. O seu pai, o digno católico conservador que não cedia nem um milímetro, negava-se também a secundar essa astúcia, e saía com as mãos livres. Ir pelas ruas com as mãos nos bolsos pode ser um gesto de heroísmo.

Há um não secreto e formidável naquele momento em que Boris Pasternak e Vasili Grossman decidem, cada um por si, escrever um romance que por contar a verdade sobre o horror das vidas destroçadas pela tirania correram o perigo certo da censura e de que os seus autores acabassem na prisão. A integridade da experiência que exige a criação de uma obra de arte é incompatível com qualquer cedência ou qualquer deferência perante os censores. Em 1973, durante o sinistro final do franquismo, Juan Marsé concebeu aquele que iria ser o seu romance mais radical até então, o mais poderoso, o mais sombrio, o mais perto do coração da sua memória infantil e da sua consciência política, Si te dicen que caí. E porque esse romance era tão importante para ele, decidiu escrevê-lo, contaria anos depois, como se o franquismo não existisse, com uma liberdade de espírito que não aceitava rebaixar-se ao nível da menor concessão, pois aceitá-lo teria coberto de infâmia o mais nobre que possuía.

O não começa por ser muito pouco, uma sílaba dita de forma solitária, ou nem tanto, um simples gesto da cabeça, que pode por vezes redundar em revolta coletiva, mas preserva sempre a sua irredutível semente individual, pois há uma parte da consciência que se manterá em guarda contra as coações do coletivo e do unânime, e porque o cidadão digno negar-se-á sempre a dissolver-se na massa. Durante a greve dos trabalhadores do lixo, em Memphis, na primavera de 1968, cada grevista levava nas manifestações um cartaz idêntico, embora individual, que reclamava, inclusive na luta coletiva, a singularidade de cada pessoa: comove-nos ver nas fotografias a preto e branco esses homens, dignamente vestidos apesar da sua pobreza, exigindo entre todos a dignidade de cada um: «I Am a Man». Sozinha, sem cartaz, com os seus óculos, com o seu sorriso largo, com as suas mãos de trabalhadora poisadas sobre o colo, Rosa Parks disse que não quando lhe exigiram que cedesse o seu lugar no autocarro a um passageiro branco, e essa negativa foi muito mais poderosa porque uma só pessoa, uma mulher, se atreveu a exercê-la. (…) Em plena epidemia de fervor evangélico, na pequena cidade de Amherst, no seio de uma família religiosa, Emily Dickinson escolheu dizer que não: «Alguns observam o sábado indo à igreja, eu observo-o ficando em casa».

A democracia torna em larga medida desnecessário o heroísmo, mas não liberta o dissidente dos incómodos e dos desgostos de escolherem o sentido oposto. Mais ainda nestes tempos nos quais se difunde com tanta facilidade o que Jaron Lanier chamou de «maoismo digital», a súbita agressividade coletiva contra uma só pessoa. O que está só e dá a cara é ainda e sempre vulnerável: no anonimato de Internet podem desfrutar-se como nunca os velhos prazeres do ultraje unânime e do linchamento. Mas (…) sendo humanamente compreensível que nas ditaduras alguém baixe a cabeça por medo da polícia, nas democracias é inaceitável que muita gente, que poderia e deveria falar, diga sim em vez de não apenas pelo medo de não estar na moda, de não fazer como os outros.

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