O não-ficcionista

Em «Dificultad de la Ficción», um artigo publicado há alguns meses no diário El País, Antonio Muñoz Molina, andaluz de Jaén e autor de romances notáveis como O Inverno em Lisboa, Beltenebros e A Noite dos Tempos, também ensaísta de mérito e cronista obstinado, lembrou a dada altura, ao falar do exercício da sua principal arte, aquilo que poderá parecer óbvio: «O romancista é livre: ele próprio determina a mistura de ingredientes reais e inventados que dão corpo à sua matéria narrativa. Mentir é a sua forma de chegar a uma certa verdade.»

Porém, para quem escreve num registo de não-ficção, essa uma liberdade que lhe está de todo vedada. Não pode discorrer, por exemplo, a propósito das invasões napoleónicas ou do código penal, inventando a seu bel-prazer o movimento das tropas ou as formas de castigo. Mas se o grau de inventividade está sempre limitado pela necessidade de demonstrar, diante do seu leitor, algo que este pode aceitar como razoavelmente objetivo, pode fazê-lo de muitas e diversas formas. Por isso, o seu trabalho, sendo menos livre que o do romancista, é, di-lo ainda Muñoz Molina, tão exigente quanto este, uma vez que requer «idênticos graus de impulso narrativo e sentido da forma, do ritmo e da caracterização dos personagens.»

O que ressalta óbvio desta ideia – que o enunciar de uma ideia ou de uma demonstração pode ser feito das mais diversas formas –, deixa de o ser quando convivemos diariamente, pelo interesse em conhecer ou por necessidade, com a maior parte das obras de não-ficção. Lemos centenas, milhares, de livros e artigos de filosofia, de história, de sociologia, de ciência política, até de crítica literária – para não falar dos que chegam do lado das ciências da natureza ou do direito – e são sempre minoritários os exemplos nos quais a harmonia do texto, a precisão e a sedução da narrativa, condições sempre essenciais para segurar o leitor, para o viciar, se mostram de forma percetível e equilibrada.

Nessas alturas, a leitura torna-se uma obrigação, quando não um desprazer, o que nos afasta dela, por muito valioso que possa ter sido o trabalho que lhe deu lugar. Julgo aliás que está aqui um dos motivos do recuo público do hábito de ler. Porém, quando o autor de não-ficção é capaz de, com engenho e arte, sair do seu pequeno mundo «especializado», quando consegue, ainda que sem perder aquilo que dá substância ao seu campo do conhecimento, abandonar a expressão seca, monótona e previsível, transforma-se, por direito próprio, num escritor. Oferecendo-se então ao interesse de um público mais vasto e menos ocasional. Multiplicando assim a sua voz.

Crónica publicada no Diário As Beiras.

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