O tamanho de uma cidade

Gosto muito de biografias de cidades. Sempre que encontro alguma e me parecem seguros a competência da escrita e o certeza da informação – mesmo quando esta incorpora, e isso acontece quase sempre, uma dimensão ficcionada –, não descanso até a ler. Só nos últimos anos, recordo a leitura compulsiva de obras que traçam o percurso histórico de algumas delas, distribuídas por diferentes mapas, como Istambul (Orham Pamuk), Salónica (Mark Mazower), Jerusalém (Simon Montefiore), Praga (John Banville), Rio de Janeiro (Ruy Castro), Paris (Julien Green), Nova Iorque (Patrick McGrath) ou Odessa (Charles King). De cada uma, no correr das páginas, emergiu sempre um corpo vivo, dinâmico, capaz de ultrapassar a transitoriedade dos percursos pessoais ou das gerações associados ao emaranhado das ruas e ruelas, das casas, das praças ou dos seus lugares mais recônditos.

Um dos aspetos mais aliciantes prende-se com a característica, destacada há algum tempo por Andreas Huyssen, de apresentarem sempre a forma de «palimpsestos urbanos». Isto é, de incorporarem camadas sobrepostas, materiais e vivenciais, que valem tanto pela especificidade de cada uma delas quanto pelo conjunto que formam. Cada tempo, cada experiência, é apenas um episódio, como um papiro mais cedo ou mais tarde rasurado e reescrito, de um todo que vale pela conjugação dessas diferentes camadas. Mas ao mesmo tempo, cada um daqueles que a habita, ou que a visita com regularidade, vai incorporando, fazendo sua, essa dimensão a um tempo temporal e intemporal, que o torna uma parte dela e a faz também parte de si próprio.

Isto acontece com as grandes urbes, as metrópoles mais efervescentes, ou com aquelas que, vivendo períodos de decadência ou modorra, detêm um lastro histórico que as projeta para além do tempo e das coordenadas. É aqui que reside parte do fascínio de nelas morar, por elas passar, nelas nos deixarmos surpreender, reconhecê-las pelo que nos doam. Na grande cidade, além disso, existe uma dimensão de liberdade que é doada pela possibilidade de nela traçarmos, como sugeriu Baudelaire, o percurso do «flâneur», feito de acasos e improvisos: podemos engendrar múltiplos percursos, percorrê-los sem obstáculos ou preconceitos, fazê-lo num anonimato que nos possibilita uma relação mais forte e mais íntima com os seus espaços, os seus edifícios, as multidões que a atravessam. Perante um cenário diante do qual quem assim projeta o seu próprio movimento age como protagonista, fazendo da cidade o teatro da sua existência.

Numa cidade média, menor no dinamismo e volubilidade, esta possibilidade diminui e precisa de estímulos para não coagir as nossas expectativas. Aqui a dimensão de liberdade encontra-se limitada pela exiguidade do mapa. Se existe menos espaço e menor volume de habitantes, se a variabilidade dos percursos é menor, é natural que a riqueza da vida citadina diminua, que cada um mais facilmente ceda às imposições de uma vida monótona. É aqui, porém, que interfere a iniciativa política de quem gere a cidade e tem meios para mobilizar o seu passado, organizar o seu presente e projetar um futuro. Numa cidade destas, que se quer aberta ao crescimento, à inovação e, por este meio, ao enriquecimento da vida de quem nela vive ou de quem por ela passa, são precisos imaginação e rasgo em dose suplementar para construir o palimpsesto. Para que nelas viver não seja apenas uma necessidade, e menos ainda uma fatalidade, mas um prazer e uma aventura. Será esta possibilidade que nos fará amá-la. Não é para todos, mas depende de cada um.

Crónica publicada no Diário As Beiras.

    Atualidade, Cidades, Coimbra, Olhares.