O pântano e a dignidade

Fotografia de Nira González

Era prática corrente da propaganda do antigo regime a exibição contínua e manifestamente exagerada das pequenas vitórias caseiras. Estas deveriam provar, dentro e para fora das fronteiras, que se éramos pobres e «felizmente atrasados», como Salazar chegou certa vez a descrever-nos, expondo sem artifícios a sua conceção rural e imóvel do mundo, tal não nos impediria de ser melhores que os outros em modestas mas honradas áreas de atividade. Mas por aí deveria ficar o limite da nossa ambição.

Existiam então campeonatos que se presumia não serem os nossos, disputando prémios que jamais nos deveriam interessar. O Criador não nos teria feito para trabalhar em fábricas grandes e modernas, para transitar em estradas amplas e decentes, para ter escolas bem equipadas e confortáveis, para ser invejados pelo desenvolvimento científico e tecnológico. Ou, pior, para viver em liberdade e usar do direito à crítica, matéria própria de povos sem norte, incréus ou com a mania das grandezas. Alguns campeonatos permaneciam mesmo escondidos, pois a sua simples menção poderia perturbar a pacatez das gentes. O campeonato da educação universal, por exemplo. Ou o dos serviços públicos acolhedores e eficazes. Ou o da alimentação e da saúde adequadas para todos. Ou o da proteção na velhice. Ou o do direito a uma vida digna e em paz.

Os títulos – antes ainda das vitórias efémeras no hóquei e no futebol – foram, ao longo de décadas, os da tríade vencedora que o livro escolar único e obrigatório ia mostrando. O de 5º maior produtor mundial de vinho tinto (que dava «de comer a um milhão de portugueses», enquanto destruía a vida de outros tantos), o de 3º maior produtor planetário de azeite (sem grande qualidade, sabe-se hoje, mas capaz de lubrificar sem restrições o popular bacalhau) e, debastados os sobreiros, o de 1º produtor universal de cortiça. Eram títulos associados a produtos milenares, provenientes do meio rural, que chegavam e bastavam para recordar que poderíamos ser bons se quiséssemos manter-nos pequenos, e que, depois de mortos os «barões assinalados», ainda alguma fibra persistia.

Perto de quatro décadas de democracia alteraram profundamente este panorama. É certo que muito se perdeu por culpa própria ou de alheios, que hesitações e descaminhos nos trocaram tantas vezes as voltas, que o terceiro D de Abril – o de Desenvolvimento, depois dos de Democracia e de Descolonização – fora achado mas não cumprido, que outros d (o de desgoverno, o de desperdício, talvez o de destino) muito deitaram a perder. Mas fomos capazes de sair da cova funda e negra, e do isolamento, proporcionando a pelo menos três gerações o vislumbre da prosperidade e uma vida razoavelmente digna. Na certeza de que quase todos poderiam ter os mínimos para, como proclamava a canção de Sérgio Godinho, conseguir «a paz, o pão, saúde, educação». O que nos permitiu chegar perto do pódio em muitos e novos campeonatos.

Estamos agora a regressar em passo acelerado ao ponto de partida. Em pouco menos de três anos a regressão foi brutal. Não apenas na perda de direitos, ou no recuo de todos os índices de desenvolvimento, mas sobretudo no que respeita ao desaparecimento da esperança de um futuro tranquilo. Atolados no pântano, não entrevemos saída ou salvação. E já nem em campeonato algum podemos jogar com convicção. Talvez apenas o triste, tristíssimo, da bajulação perante os mandantes da austeridade e da pobreza. Talvez o da falta de coragem política para defender a nossa independência. Ou então, dependerá de nós, o do terramoto cívico que nos traga o quarto D, sem o qual naufragaremos: o da Dignidade.

Publicado originalmente no Diário As Beiras.

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