O rapaz que olhava os navios

Memória, ensaio e elegia, eis um livro escrito como história afetiva da cidade que o autor crê habitada «de ruínas e de melancolia». Escolheu observá-la a partir dos sinais de um passado que é o da sua infância e primeira juventude, fazendo-o acompanhar de recordações familiares, fotografias a preto e branco, livros e jornais envelhecidos. Por todo o lado o hüzün, uma variedade de melancolia, de tristeza, aplicada aos istambuleses que padecem de um sentimento de perda por viverem num lugar cujos dias de glória acabaram. Não se trata, porém, de um exercício meramente nostálgico, pois Istambul não foi apenas o território físico de Pamuk: foi também a casa-mãe da sua imaginação, um espaço com o qual manteve sempre uma identificação poética, o observatório privilegiado para a sua percepção das mudanças do mundo.

A antiga sede dos impérios bizantino e otomano, construída nas margens da Europa e encravada entre Oriente e Ocidente, integra uma permanente ambiguidade cultural que tem sido fonte de conflitos mas também motivo de atracção para quem chega de fora. Orhan Pamuk, que nasceu numa família da elite laica e ocidentalizada, evoca escritores vindos de longe que chegaram à procura do pitoresco e do exótico (Lamartine, Nerval, Gautier, Gide, De Amicis, entre outros), mas também autores locais – como Ahmet Rasim ou Resat Ekrem Koçu, o criador de uma original Enciclopédia de Istambul – que procuraram enunciar a cidade da quem a habitava e não repetir a perspectiva romantizada e orientalista adoptada pelos visitantes.

Pamuk incorpora ambos os legados, o do viajante ocasional e o do residente, mas, como acontece com Joyce e Borges em relação a Dublin e a Buenos Aires, situa também a experiência da cidade-mãe na génese da sua personalidade e do seu trabalho criativo. Para obter este efeito o escritor segue um trajecto mais ou menos cronológico, desde uma infância algo mágica, repleta ainda dos sinais de uma cidade que entretanto desapareceu, até aos anos da universidade, e culminando com a decisão de se tornar escritor. Como leitmotiv um omnipresente Bósforo, objecto de atracção de tantos naturais, que, tal como o autor enquanto jovem, consumiam e continuam a consumir uma boa parte do seu tempo na observação do tráfego sempre excessivo dos navios que cruzam o Estreito. Como se o seu reflexo hipnótico bastasse para lhes retirar a vontade de abdicarem da cidade dileta.

Pode pois ler-se este livro como itinerário poético de uma grande a antiga cidade. Não aquela que observam os numeroso grupos de turistas vindos de todas as partes que hoje ali vão aportando, mas uma outra, íntima, feita de memória, de poesia e de passagem do tempo.

Orhan Pamuk, Istambul. Memórias de uma Cidade. Tradução de Filipe Guerra. Editorial Presença, 368 págs. Versão revista de um texto publicado na LER de Outubro de 2008.

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