Um paradoxo desdobra-se à nossa frente. De um lado, o progresso muito rápido das técnicas de vigilância que o digital possibilita faz do Estado um Big Brother real. Do outro, o progresso não menos rápido das técnicas de comunicação produz um certo ambiente de transparência. De um lado, as câmaras de vídeo, os instrumentos de geolocalização, as pegadas digitais, genéticas e oculares, os ficheiros bancários, os dossiês médicos, o histórico das nossas chamadas telefónicas, as mensagens na Internet e o rasto das nossas peregrinações pela rede, compõem uma panóplia de instrumentos que permitem às autoridades o estabelecimento de um cerco quase completo da vida pessoal ou mesmo íntima. Do outro, através do Google, do Facebook, do Twitter, entregamo-nos com entusiasmo e sem pudor ao olhar dos outros, confiantes ou não, sem motivo especial ou ávidos de informação.
As duas dinâmicas poderosas apontam na mesma direção: a construção de uma sociedade da transparência na qual deixámos de saber com precisão onde se situa o limite entre a vida privada e a vida, senão pública, pelo menos disponível aos olhares dos outros. Duvidamos a todo o momento se se trata de uma coisa boa ou maléfica, mas sabemos que em qualquer dos casos está a ocorrer uma transformação enorme. Provavelmente uma mudança de paradigma civilizacional. Assistimos assim à materialização, diante de todos, de três fantasmas projetados respetivamente por Orwell, Kafka e Huxley: a vigilância de todos por um Estado potencialmente omnisciente, a submissão de cada a uma espécie de Olho soberano, do qual não sabemos aquilo que ele sabe de nós, e a alegria, a felicidade, de contribuirmos por iniciativa própria para um avanço até ao que imaginamos, otimistas, como o melhor dos mundos.
Esta conjunção é particularmente visível, e torna-se particularmente pesada, nos Estados herdeiros da tradição totalitária, como a China e a Rússia. Mas levanta também problemas graves e complexos nas nossas velhas democracias. Até onde pode, ou deve, ir o poder do Estado no que diz respeito à intrusão na vida privada? O que pode valer o argumento segundo o qual, se nada temos a temer, podemos deixar que os outros tenham acesso a tudo o que somos, dizemos ou fazemos? E desde que os cidadãos possam eles próprios explorar técnicas de vigilância para denunciarem os abusos do poder, esta suposta transparência não pode ser um fator de equilíbrio? Em qualquer dos casos, mais do que nas tecnologias, as dúvidas prendem-se com a formação e as intenções de quem as produz e controla. E aqui está provado que a linha entre as possibilidades do uso e os fatores do abuso é muito ténue, ou facilmente dissipável.
Ouvimos aquilo que ouvimos sobre os abusos das corporações da polícia secreta e preocupamo-nos mais com quem os comete do que com as condições que permitem que eles sejam cometidos e, ao mesmo tempo, mostrados como necessários ou inevitáveis. De um modo cada vez mais evidente, o excesso de informação circulante corresponde menos às velhas ilusões iluministas de um saber completo, universal, e mais à afirmação de processos de vigilância destinados a reduzir ou a eliminar a nossa liberdade. Dependemos de uma evolução do Panóptico concebido por Jeremy Bentham e relembrado por Michel Foucault, o edifício circular no qual o guarda prisional podia observar com um só olhar todos os prisioneiros sem que ninguém soubesse em que momento era efetivamente vigiado. Tal como acontecia em relação a esse dispositivo carcerário, em que a justificação era a produção de uma sociedade bem ordenada, na qual os prisioneiros fossem dissuadidos de cometer quaisquer abusos e se mantivessem sob uma ordem pacificada. A possibilidade da aplicação de tal princípio à sociedade no seu todo é aterradora.
Parte deste artigo dialoga com problemas levantados no número de Junho de revista Books.