Tecnologia e conflito

Em viagem

Num artigo da Wired de Junho que saiu ontem, o autor, Brendan Koerner, dialoga com um leitor, real ou forjado, que lhe conta ter sido repreendido por um estranho pelo facto de usar o seu iPad num autocarro nova-iorquino, o que o transformaria, de acordo com as palavras um tanto irritadas desse estranho, em alvo potencial, e provavelmente justificado, de um assalto ou mesmo de uma tentativa de homicídio. Nem tanto pelo valor monetário do aparelho, que ainda assim seria fácil vender numa rua menos iluminada por quaisquer 500 dólares, mas antes pelo que representava para o potencial agressor a exibição de uma tecnologia que significa conhecimento, mobilidade e acesso a universos de comunicação infinitos e desejáveis. A repreensão parece fazer sentido, tal como o perigo invocado se afigura verdadeiro, remetendo-nos para um território de violência, urbana e selvagem, no qual pode tornar-se difícil gerir a própria integridade física.

Utilizador regular e intensivo dos aparelhos de comunicação e lazer da tríade i da Apple, percebo o perigo e o mal-estar que esse uso pode causar aos outros. Apesar deles me servirem como instrumentos de trabalho, já me tenho inibido de usar em público o iPad ou o iPhone – o iTunes, o único exclusivamente voltado para o lazer, é o mais humilde de todos e passa facilmente por tecnologia barata – justamente por perceber o seu uso como uma potencial agressão aos cidadãos com quem partilho a sala de espera do centro de saúde ou a gare da estação de comboios. Aquilo que me preocupa, porém, não é ocorrência ocasional da situação, na expectativa desta poder ser alterada pela melhoria das condições de vida e de acesso à tecnologia por parte da maioria das pessoas. É antes a consciência de que, no tempo que agora passa, o fosso entre os que têm muito ou o suficiente (em dinheiro, informação, capacidade para comunicar, direito aos sonhos) e os que nada disso podem ter ou sequer desejar, tende a aumentar, produzindo situações de conflito. Criar-se-á então, numa situação extrema, a necessidade de, para usarmos um aparelho que serve para nos ligarmos aos outros, precisarmos de isolamento em ambientes reservados. Já é assim em Calcutá, no Rio ou em Lima. Provavelmente, em breve assim será aqui também.

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