Seinfeld e o Facebook

Seinfeld

No mundo antigo, organizado à volta das relações de parentesco e dos laços dinásticos, as afinidades electivas, as amizades, eram excepcionais, aparecendo muitas vezes, justamente por isso, como subversivas. O cristianismo tentará eclipsar este tipo de ligação ao colocar como modelo a relação individual com Deus. Por isso também, as comunidades monásticas afastaram a amizade das regras do seu quotidiano: as ligações privadas representavam uma ameaça para a coesão do grupo e para a fé. Os humanistas, porém, retomaram-nas, construindo a primeira rede pan-europeia assente na fidelidade pessoal e numa aproximação de valores e de sensibilidades, que mantinham recorrendo principalmente à correspondência privada. Já a Revolução Francesa emancipou o valor da aproximação pessoal ao colocar a fraternidade como uma das suas divisas nucleares. A cultura da amizade de grupo chegaria décadas mais tarde, associada em parte à extensão do sistema escolar e ao serviço militar obrigatório e universal, criadores de espaços e de tempos de aproximação. Terá atingido o seu zénite nos anos sessenta, permanecendo como um vestígio ainda atraente por volta de 1989, quando arranca a série televisiva Seinfeld. A coesão do grupo dependia aí, em primeiro lugar, das cumplicidades assentes no relacionamento diário, directo e pessoal, entre aqueles que o compunham.

Não sei se existe ou não uma linha de continuidade, nesta narrativa flash da amizade, com o universo dos «amigos» que todos os dias fazemos entre os mais de 520 milhões de habitantes – a larga maioria composta por mulheres, vá lá o Diabo explicar o porquê – que povoam o mundo-rede do Facebook. Parece que a média por pessoa é de 130 afectuosos companheiros e amorosas parceiras, o que só por si nos remete para esse conceito de «salto qualitativo» utilizado nos catecismos do materialismo dialéctico para significar uma alteração efectiva do estado das coisas. Significará esta multiplicação de «amigos» o futuro da amizade? Por mim, admito que a maioria dos quase 500 que tenho me aparece como um vulto. Simpático muitas vezes, sobretudo quando salta da penumbra e lhe oiço a voz, mas um vulto. Isto se excluir a quantidade de voyeurs e exibicionistas que passa no horizonte, muitos deles mais empenhados em multiplicar audiências do que em agregar empatias. Mas há mesmo, por ali, pessoas que não conhecemos em pele e osso e de quem, até prova em contrário determinada pelo feitio, o penteado ou o mau hálito, gostamos ou acreditamos que gostamos. Com elas, e com algumas das outras, vamos cruzando gostos e cumplicidades, defendendo causas de outro modo perdidas, trocando informações úteis e frases calorosas que só ali nos saem do tinteiro. Será isto «amizade»? Ou apenas, nesta sociedade atomizada, com as referências vindo e partindo em perpétuo movimento, «uma tentativa de encontrar um sentimento de pertença a um colectivo», como escreve a socióloga Stéphane Hugon? Assistimos ali à construção de relações de proximidade que partem do colectivo para o indivíduo e não o contrário? Pode ser esta a chave para entender a mudança? Se for assim, não será mau de todo. Basta adaptarmo-nos. E ir aproveitando os restos do mundo arcaico feito de afectos conquistados com a epiderme. Afinal Jerry Seinfeld, George Costanza, Elaine Benes e Cosmo Kramer não se conheceram no Facebook.

[Vem um bom dossier sobre este tema no número de Outubro da revista francesa Books.]

    Apontamentos, Cibercultura, Olhares.