Deserção

O desertor

É dúbia, esquiva, quase sempre sombria, a aparência do desertor. Amaldiçoada ou reconhecida, criminalizada ou heróica, a deserção começa por ser aquilo que os outros – aqueles que a avaliam à distância – declaram que é. Na guerra de 14-18 os pacifistas exaltavam-na como acto de coragem, ao mesmo tempo que os códigos de justiça militar agravavam os castigos sobre os «traidores». No confronto civil que se seguiu à revolução de 1917, o julgamento variou consoante a direcção tomada pelo foragido. O mesmo aconteceu em Espanha durante a Guerra Civil, na Segunda Grande Guerra, no Vietname, em Angola, em Israel, na Chechénia ou no Afeganistão. A cada momento, em cada situação, foram quase sempre os outros, aqueles que não calçavam a bota militar, a decidir sobre a dimensão ética e o enquadramento penal desse gesto radical e sem retorno de desertar.

Raramente têm sido reconhecidas as razões dos que não aceitam uma motivação política ou moral para continuarem a combater e se decidem pela recusa. Os que o fizeram, ou continuam a fazer, não por um belo dia darem por si na trincheira errada de uma guerra justa ou injusta, ou por se descobrirem pacifistas, mas apenas pelo humano medo da morte, por lhes parecer que a vida é demasiado hospitaleira para caírem no campo de batalha, esventrados por uma granada ou com os miolos perfurados por uma bala. Esses são aqueles que ambos os partidos combatentes rejeitam, mas cujas razões são tão válidas, tão certas, tão admissíveis, quanto as dos que encontram uma explicação para morrerem ou para trocarem de lado e prosseguirem o combate. São aqueles cuja decisão urgente os leva a decidirem-se pelo último assomo de coragem que só faltou ao valente soldado Schweik porque Hašek não chegou a concluir o seu romance.

    Etc., Olhares.