Salónica: uma cidade e o seu labirinto

Salónica

Versão revista de um texto publicado na LER No. 75

Até 1909, o ano da fundação de Tel Aviv, Salónica era a única cidade do mundo na qual a principal língua utilizada era de matriz judaica. Por essa altura, a maioria da população falava ainda o ladino, ali estabelecido nos inícios do século XVI com a diáspora sefardita, mas viviam-se os últimos tempos de um espaço policromo, no qual cristãos, muçulmanos e judeus tinham podido conviver na diferença, apesar dos conflitos pontuais e das situações de desigualdade perante a lei otomana. É verdade que ela se parecia mais com uma justaposição de pequenas aldeias, nas quais turcos, judeus, gregos, búlgaros, albaneses, ocidentais e ciganos preservavam os seus territórios, mas nada de semelhante podia ser observado em qualquer outra grande cidade. Mark Mazower, especialista em história da Grécia e dos Balcãs, traça em Salónica – Cidade de Fantasmas o seu percurso único e fascinante, prestando uma particular atenção ao longo lapso de tempo que começou em 1430, com a tomada da cidade ao poderio bizantino-veneziano pelo sultão Murad II, e encerrou já em pleno século XX com a reinstalação, em território turco, dos últimos membros da comunidade muçulmana que nela haviam permanecido após a sua conquista pelos gregos. Durante todos esses anos, foi traçado um percurso sinuoso e complexo que Mazower descreve com uma profusão de informações capazes de trazerem à vida um passado do qual já quase não restam hoje vestígios materiais.

O epíteto de «cidade dos fantasmas» diz essencialmente respeito ao total desaparecimento, ocorrido já no último século, de duas daquelas comunidades. O primeiro teve lugar imediatamente após o fim da dependência da cidade do estado turco, com a evacuação forçada da maior parte da população de origem muçulmana. O segundo, particularmente rápido e brutal, aconteceu em 1943, quando os ocupantes nazis enviaram para Auschwitz cerca de 50.000 salonicenses, dos quais apenas dez por cento viriam a sobreviver. Para além do enorme impacto humano no mapa da cidade, este facto ficou ainda associado à responsabilidade de numerosos cristãos gregos na repressão anti-semita que facilitou o trabalho dos ocupantes alemães. Alguns críticos consideram, aliás, que nesta obra o historiador menosprezou conscientemente a importância desse episódio vergonhoso da história contemporânea da Grécia.

Salónica oferece uma leitura apaixonante, por intermédio da qual a evocação do passado, ali extremamente bem documentada e apresentada de forma consistente, confirma o trajecto único de uma cidade que não possuindo hoje o fascínio e o património monumental da rival Istambul, nem por isso deixa de simbolizar um reencontro que a história recente dos Balcãs tornou particularmente exemplar e perturbante.

Mark Mazower, Salónica. Cidade de Fantasmas. Cristãos, Muçulmanos e Judeus de 1430 a 1950. Tradução de José Pinto Sá. Pedra da Lua, 576 págs. ISBN: 978-989-8142-10-8.

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