Uma lição de João (adenda)

João Martins Pereira

Originalmente em Caminhos da Memória

O texto que escrevi ontem sobre o desaparecimento de João Martins Pereira não era uma evocação nem pretendia servir de obituário. Correspondeu apenas a uma reacção a quente perante a notícia da morte de uma pessoa que não conheci pessoalmente mas me habituei a acompanhar. Na minha biblioteca, em lugar acessível, os seus livros estão encostados aos de António José Saraiva e de Eduardo Lourenço, e julgo que tal poderá dizer alguma coisa a alguém. Ou di-lo a mim, pelo menos. Não falei portanto de algumas das suas intervenções e das ausências me falaram mails que recebi entre ontem e hoje. Não lembrei, por exemplo, a sua proximidade dos processos de fundação do MES e, muitos anos mais tarde, do Bloco de Esquerda. Ou a sua actividade como professor, engenheiro e cronista.

Mas uma ausência me parece de facto injusta. Num testemunho conciso e comovente saído hoje no Público, Eduarda Dionísio anota o esquecimento de um jornal absolutamente único, publicado a partir de 1975, do qual João Martins Pereira foi director, colaborador e acima de tudo grande entusiasta. Tratava-se da Gazeta da Semana, anos depois reduzida por dificuldades várias a Gazeta do Mês, e do qual até tinha a colecção completa, desaparecida algures junto com um caixote que levou descaminho numa qualquer mudança. Sobraram-me apenas alguns exemplares dispersos, e é de um deles que me sirvo para ajudar a preencher a falha.

Junho de 1980, artigo «Resistir ou Re-existir» na Gazeta do Mês número 2: «A condição feminina é-me exterior, como o é, num outro plano, a condição operária, a mim, intelectual de extracção burguesa. Libertar-me do complexo de “não ser operário” não é distanciar-me do problema da exploração. É justamente escolher colocar-me, em relação a ele, na única posição que, de boa-fé, me é possível assumir: a da apreensão intelectual, a da “teoria”, a de uma prática solidária, que não a de uma prática vivida (impossível) ou a de uma prática imitada (falsa). Levantemos de uma vez certas ambiguidades persistentes: não posso fazer minha a luta pela emancipação feminina, como não posso fazer minha a luta proletária. Estou com elas. E ao estar com elas, isso determina-me nas lutas que me pertence, a mim, travar.» Parágrafos destes, num tempo dominado agora pelos exageros do politicamente correcto e pelo receio da exposição pública, não existem muitos.

[Entretanto o Centro de Documentação 25 de Abril disponibilizou online a colecção da Gazeta da Semana]

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