A opção ortográfica

No final de agosto de 2011, há precisamente um ano, após alguma medição dos prós e dos contras, este blogue passou a seguir o último Acordo Ortográfico da língua portuguesa. A propósito da data, regresso a dois posts que entretanto escrevi – um nessa altura, o outro há apenas seis meses – republicando-os em conjunto com ligeiras alterações formais. Não procuraram justificar uma posição olhando para os detalhes, o que remeteria para a longa polémica na qual têm intervindo especialistas e leigos. Mas tentaram contrariar o sectarismo e cegueira que nada resolvem.

1. Ação! (para o bem e para o mal) (Agosto de 2011)

Ainda não falei da decisão de passar a servir-me, neste blogue como na vida lá fora, do Acordo Ortográfico da língua portuguesa em vigor. Sem referir argumentos utilizados no debate longo e por vezes exaltado que antecedeu a sua aprovação e tem envolvido a sua aplicação, invocando razões para se ser contra ou a favor às quais fui algumas das vezes igualmente sensível, poderia explicar-me com as imposições que me chegam de fora: documentos oficiais que tenho de redigir e assinar nos quais a partir de 2012 me será exigida a aplicação da nova norma, por exemplo, ou as recomendações de redações e de editoras que pedem com insistência os originais num português atualizado segundo o Acordo. Noutra direção, poderia dizer que o fazia para me revelar um sujeito à la page, desperto para os upgrades do real. Mas só isso não chegaria para me levar a mudar a medida da escrita da qual me sirvo há mais de meio século. Acrescento por isso duas outras razões.

A primeira prende-se com a consciência muito aguda que tenho da volatilidade das línguas, em particular daquela que é a minha. Passei cerca de quinze anos a ler textos manuscritos e impressos dos séculos XVI, XVII e XVIII, deparando-me com um nível de metamorfose e de indecisão tão grande que muitas vezes cheguei a encontrar num só livro publicado a mesma palavra grafada de três diferentes maneiras. A partir dessa altura nunca mais fui a mesma pessoa na aferição de critérios demasiados fixos, ou fixistas, para a definição de regras destinadas a domar um «babelismo» impeditivo da comunicação entre falantes de divergentes geografias, ambientes e gerações. Já o segundo motivo é de ordem puramente prática: como estou numa altura do calendário pessoal na qual é bastante fácil o cérebro experimentar alguma dificuldade em carburar com a mesma agilidade relativa do passado, será sempre bom ginasticá-lo, refrescar-lhe o tónus, combatendo os automatismos antigos e adotando outros novos. Para mim são razões de sobra para passar à ação.

2. O choque ortográfico (Fevereiro de 2012)

As alegações contra o Acordo Ortográfico mostram duas caras. Uma matinal, positiva, honesta, colocando problemas autênticos, dúvidas compreensíveis e objeções que são completamente legítimas; a outra encrespada e violenta, empapando a discordância de azedume, erros e até embustes. Esta tem-se servido de forma recorrente uma retórica de «redução ao absurdo» que integra hipóteses sem pés nem cabeça e escolhas do legislador sistematicamente inventadas, ou então casos impossíveis que jamais se colocaram («o que seria se…», «imaginem que…», «suponham lá…», «e se optássemos por…», etc.). Segundo uma retórica que tende a subvalorizar a inteligência do leitor e por isso não funciona, com toda a certeza, como uma boa forma de convencimento. Fui dos que tardaram em adotar o Acordo, só me decidindo, após quase ter jurado sobre os Evangelhos que jamais o faria, devido a algumas obrigações profissionais. Ainda assim fi-lo de forma hesitante, sem a certeza de haver tomado a decisão certa no momento adequado. Depois – isto é, praticando, enganando-me, corrigindo – lá fui percebendo que o mencionado Acordo integra muito mais escolhas com sentido, tendentes a aproximar a escrita que uso da fala à qual recorro, do que aquelas que, na realidade, me parecem ainda discutíveis e incómodas. E agora sinto-me muito bem com a escolha, convivendo perfeitamente com os dois modelos e em nada me afligindo o facto de continuar a ler textos que seguem a norma anterior. Respeitando, sem problemas ou os sinais de nervoso miudinho que encontro em alguns dos seus adeptos jurados, quem continua a praticá-la.

O que já não sou capaz de aceitar é a «argumentação» agressiva que muitos destes continuam a usar. Para poder atacar o que foi acordado e legislado, ela recorre repetidamente à falsificação daquilo que realmente se estipula. Ou à demanda um pouco obsessiva das pontuais (embora reais) incongruências. Não, lamento mas não existem «fatos» em vez de «factos». «Vice-rei» não passou a «vicerrei», nem «mata-bicho» foi despromovido a «matabicho». E a terceira pessoa do plural do presente do indicativo do verbo ter, em português de Portugal, continua a ser «eles têm», e não «eles tem». Mas mau, mau mesmo, é usar-se como arma de arremesso na cruzada anti-Acordo textos que se servem das especificidades nacionais (portuguesas e brasileiras, principalmente) que o mesmo reconhece – «de que serve uniformizar para manter diferenças?», uma pergunta que até faz sentido – em favor da causa rigidamente imobilista que essa cruzada advoga. É que esta até tem atuado maioritariamente no sentido oposto, discordando justamente da uniformização… A cegueira e a demagogia são sempre inimigas da clareza e da razoabilidade e por isso não podem ser levadas a sério. Já o debate apoiado numa argumentação honesta e em dúvidas legítimas deve ser estimulado.

P.S.: Como pode ver-se, é possível ler sem problemas parágrafos que seguem o Acordo de forma normal. Sem procurar de propósito palavras e construções frásicas destinadas a sublinharem os malefícios do choque ortográfico. Ou, na direção contrária, sem falar de um Acôrdo (ou Accordo) Ortographyco, ironizando com os adversários a propósito da impraticável estagnação da língua.

    Oficina, Opinião.