«E Agora, Esquerda?»

Intervenção na apresentação em Coimbra, em 29 de Janeiro de 2016, da coletânea de intervenções «E Agora, Esquerda?», de Porfírio Silva (ed. Âncora)

«E Agora, Esquerda?» é o título, em forma de questão, que Porfírio Silva nos propõe. Levanta muitos e diversos problemas, mas como seria impossível tratá-los a todos aqui, fiz algumas escolhas. Destaco seis tópicos, que enuncio sob a forma de perguntas de retórica.

Primeira pergunta: «Falamos de Esquerda ou de Esquerdas?»

É uma velha e complexa questão para a qual não vou esboçar uma resposta. Mas gostava de rebater um mito a seu respeito construído em Portugal. Tende muitas vezes a apontar-se os acontecimentos do chamado «biénio revolucionário» de 1974-1976 como fase decisiva para estabelecer uma tripla e quase intransponível clivagem, separando o Partido Socialista, o Partido Comunista Português e a chamada «extrema-esquerda», ou, como hoje usa dizer-se, «a esquerda da esquerda». Quase todos os livros de história sobre o período, bem como a memória daqueles que o viveram, tendem a confirmar essa ideia, dando a entender que só então se produziram os conflitos, aparentemente insanáveis, que determinaram a acentuada divisão das esquerdas.

De facto, a longa ressaca da revolução, iniciada com o 25 de Novembro de 1975, foi também uma ressaca dos conflitos que esta viveu. E todos sabemos como entre o conflito não resolvido e o rancor vai menos de um passo. Mas ao contrário daquilo que alguma mitografia benévola propõe a propósito de uma suposta «unidade antifascista», essa separação vem detrás, tendo sido particularmente intensificada depois da campanha de Humberto Delgado, ao longo da década de 1960 até ao 25 de Abril.

Essa separação, hoje, pois, com bem mais de meio século, partiu sempre do princípio, raramente posto em causa, de que cada uma das partes em conflito detinha a «linha justa», execrando as outras como intoleráveis e perigosas heresias. Como se, mesmo quando confrontada com a atividade da direita política, a esquerda, a «verdadeira esquerda», fosse propriedade de uma das suas partes, à qual as outras se deveriam inevitavelmente subordinar.

No entanto, como a dado passo sublinha Porfírio Silva, «a esquerda só não é plural nas ditaduras». Não poderia estar mais de acordo com esta ideia. A esquerda não tem proprietário – vive «sem deus, nem mestre», como na velha frase, libertária e socialista, de Auguste Blanqui – embora, na nossa história recente, todas as suas partes, num ou noutro momento, tenham procurado agir como tal. Devo incluir neste retrato também o PS, que no passado, e hoje ainda em alguns espaços e lugares, ajudou a fechar portas com manifestações de autoritarismo, de sobranceria ou de fácil compactuação setores com que nada tinham a ver com a sua família política.

De acordo, pois, com a identificação, produzida neste livro, de uma Esquerda escrita no singular e com maiúscula, tomada como reunião de pluralidades aproximadas por alguns princípios comuns. Não necessariamente une, nem inevitavelmente contraditória, mas sempre plural.

Isto conduz-nos à segunda pergunta, colocada, neste contexto de diversidade, a respeito do PS: «Devemos falar de socialismo ou de social-democracia?»

Ela não nos é proposta de uma forma expressa neste livro. Mas, a meu ver, está nele omnipresente. Um dos dramas da social-democracia contemporânea – em Portugal, como sabemos, representada a partir da sua fundação pelo Partido Socialista, e não pelo PSD (a designação do PSD foi sem dúvida um «dano colateral» da nossa revolução) – reside justamente no facto de oscilar constantemente entre o ideal de socialismo, quase sempre mais estruturante, e a prática moderada do reformismo, pragmático mas por vezes politicamente desvitalizado.

Em Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos, obra publicada em 2010, o historiador Tony Judt sintetizou a dicotomia clássica. Cito Judt: «O socialismo tem a ver com a mudança transformadora e a substituição do capitalismo por um regime baseado num sistema de produção e de propriedade totalmente diferente. A social-democracia, em contraste, foi um compromisso: ela implicava a aceitação do capitalismo e da democracia parlamentar, como o contexto no qual passariam a ser tratados os interesses negligenciados de vastos setores da população.» Esta é a antítese tantas vezes ouvida, que remete para os debates em redor da fundação da II Internacional «reformista», e transformou o epíteto de «social-democrata», para boa parte da esquerda, num insulto. É a ela que se referem, ainda hoje, as piadas jocosas a propósito do «socialismo na gaveta» (segundo a frase de Mário Soares proferida em 1978) ou do «socialismo sí, pero de espacio» (expressão saída, em 1982, do então recém-primeiro-minstro espanhol Felipe González).

No entanto, é o mesmo Judt que alerta para a necessidade de superar esta separação, citando a propósito uma passagem de George Orwell na obra Homenagem à Catalunha, de 1938. Cito Orwell: «o que atrai os homens comuns para o socialismo, e por vezes os deixa dispostos a arriscar a pele por ele (…) é a ideia de igualdade». Ou, diria eu, de justiça.

Não sei se terei lido mal, mas creio que não. Vi neste livro que estamos a apresentar uma defesa convicta da apropriação moderada, e assumidamente reformista, desta velha ideia de igualdade. A qual, a meu ver, independentemente da gaguez de alguns intérpretes, nunca deixou de estar presente numa certa alma do nosso PS. E ligo isto a alguns passos deste livro, dos quais refiro dois, muito curtos: «O espectro mais perturbador desta crise, para um socialista como eu sou, é a cobardia política de muitos partidos da social-democracia europeia» (p. 73). Ou: «É evidente que, no meio das opções que fez, a social-democracia muitas vezes perdeu o norte.» Reconhece-se, pois, que alguma coisa correu mal, mas que tal não apagou uma tradição política comum capaz de moderar as vicissitudes.

Chegamos assim à terceira pergunta: «Falamos de unidade ou de compromisso?»

Vertida com clareza neste livro, uma das pedras de toque da atual direção do PS, da atuação do seu secretário-geral e, julgo, da atividade do governo em exercício, será então a materialização política da reconhecida pluralidade da esquerda, obtida não através de uma falsa e condenada uniformidade, alcançada através de uma posição hegemónica, mas num espírito de compromisso, colocando à frente o que une, e conversando sobre aquilo que separa.

É isto que determina a obstinação (uma palavra que reputo positiva) em ouvir parceiros e em encontrar soluções partilhadas, envolvidas, cito este livro, num «novo relacionamento político com militantes e simpatizantes – e organizações – de causas que se posicionam tradicionalmente é esquerda do PS» (p. 43/4). Isto é – para nos deixarmos de palavras vagas, o que Porfírio Silva jamais faz – a obstinação, insisto, em dialogar com o BE e com o PCP. Mais, ouçamo-lo a numa intervenção, produzida em 26 de Julho de 2014, na Convenção Nacional Mobilizar Portugal, que teve lugar em Aveiro no âmbito da candidatura às primárias de António Costa: «Mas nem uma maioria absoluta deverá desviar o PS da procura de compromissos alargados que deem mais amplitude e mais profundidade à mudança necessária.» (p. 28) Recorro à paráfrase de uma expressão há uns anos muito popular: «Se isto não é novo, onde é que está o novo?»

No entanto, neste contexto de compromisso surge um importante escolho. Ele conduz-nos então à quarta pergunta: «Entretanto, que Europa?»

Aqui tenho de ser sintético. Mesmo tendo em consideração que este é um tema que de uma forma ou de outra perpassa por quase todos os textos deste volume. Limito-me a sublinhar a ideia, com a qual concordo, que a consideração da Europa como território político matricial surge sempre ligada à necessidade de rever os seus desequilíbrios políticos, económicos e sociais.

Leio na p. 25: «A tentação de virar as costas à Europa seria um erro grave. (…) Certamente que, hoje, não basta repetir, embora seja verdade, que esta comunidade deu ao continente um período de paz sem precedentes. Mas isso já não basta. Metade da Europa a empobrecer não vai ser capaz de garantir a paz. Para os nossos valores de justiça social e progresso, o mundo está difícil.» Ou, a p. 111, e a propósito da forma como as autoridades de Bruxelas trataram a Grécia governada pelo Syriza: «A maioria das lideranças europeias, alinhadas no Partido Popular Europeu (a direita europeia onde cabem o PSD e o CDS), está antes de mais nada interessada em demonstrar que um governo de uma família política mais à esquerda do “arco da governação” europeu terá de ser, eles não querem que deixe de ser, um governo fracassado.»

Isto pressupõe, como fica implícito em alguns textos deste livro, a necessidade de, sem colocar em causa a matriz das instituições europeias atuais, refundar o seu funcionamento, as suas prioridades, as suas escolhas e, principalmente, a sua dimensão democrática, vinculada à vontade e aos interesses da maioria dos cidadãos, morem eles em Helsínquia ou numa pequena ilha do Mar Egeu. Isto é, como aqui se sugere a dada altura, aceitando «regressar ao método comunitário, a sério» (p. 59).

De certa forma, é neste âmbito que podemos chegar à quinta pergunta de retórica que quero colocar: «Os partidos também morrem?»

A frase é retirada do livro. No entanto, nele não aparece como uma interrogação, mas sim como uma afirmação (p. 125). Deixada logo no início do artigo, publicado originalmente no Machina Speculatrix a 7 de Outubro de 2015, que tem como título o título dado a esta compilação. Nele se reflete, de algum modo, sobre a identidade do PS ontem, hoje e amanhã. Leio-o como um aviso: a hecatombe que, após anos de hegemonia política na Grécia, na viragem para esta década quase varreu o PASOK, o partido socialista heleno que passou de 44% dos votos em 2009 para 4,7% em 2015, tem sido apresentada como um sinal preocupante por alguns socialistas prudentes, entre os quais Porfírio Silva se conta.

Logo no segundo parágrafo, constata-se: «Uma forma clássica de matar um partido é permitir que ele deixe de representar aqueles que prometeu representar.» Para se aplicar esta possibilidade à realidade em presença: «Ora, nas eleições de domingo passado, nenhum eleitor votou no PS para dar continuidade a este governo.» Interpreto a ligação destas duas partes como um aviso à navegação, prevenindo uma eventual evolução para uma solução de aceitação da continuidade de um governo que cerca de 60% dos eleitores, a maioria deles votantes no Partido Socialista, havia clara e liminarmente recusado.

Li estas palavras não apenas como um princípio geral de política, mas como uma prevenção contra a possibilidade real de a oposição a um governo PSD-CDS de continuidade ficar exclusivamente nas mãos dos partidos situados à esquerda do PS. O que, provocando um esvaziamento da sua base social e da sua identidade política, seria, muito provavelmente, letal para o seu futuro. E também, na perspetiva de Porfírio Silva, que nunca perde de vista este aspeto, para o futuro imediato do país.

Chegamos então à sexta e última pergunta de retórica: «Devemos colocar à frente os princípios ou o compromisso?»

Sempre olhei a conhecida frase de Bismark considerando «a política como arte do possível» como particularmente cruel. Dita por quem foi dita, ela não significava outra coisa que não a adaptação das circunstâncias políticas à lei do mais forte. Leia-se: a subordinação do múltiplo ao uno, tudo em nome de uma governação pragmática. Este é um princípio profundamente antidemocrático, tantas vezes voltado, na história dos últimos dois séculos, e sempre em nome da «eficácia», contra a democracia. Mas é possível também incorrer no erro oposto, que consiste em, ao defender irredutivelmente determinados princípios, ou uma certa ideia de coerência política, ignorar as lições da realidade e, acima de tudo, a evolução da história, na qual, contrariando o conhecido princípio proclamado no século VI antes de Cristo pelo grego Heráclito de Éfeso, jamais será possível alguém banhar-se duas vezes nas mesmas águas do mesmo rio.

A combinação dos princípios com a capacidade do compromisso, associada à perceção de que nada é imutável, é uma das ideias que sobressai na leitura deste livro. Isto torna-se particularmente claro quando fala – no último texto, já de 9 de Novembro passado – da possibilidade dos acordos de incidência governamental que nos devolveram alguma esperança e começaram a libertar do pesadelo profundo destes últimos anos. Contra a ideia de que existem partidos com uma “natureza boa” (democrática, dialogante, leal), e outros dotados de uma “natureza má” (antidemocrática, sectária, desleal), propõe-se, não uma “mistura de naturezas”, mas a superação do errado princípio de acordo com o qual, em democracia, existam partidos democráticos que devam ser excluídos das responsabilidades de representação dos seus eleitores e das tarefas inerentes à gestão diária do poder político.

Neste sentido, à pergunta colocada no rosto do livro «E Agora, Esquerda?», Porfírio Silva responde, a meu ver muito bem e muito justamente, com a proposta de uma defesa racional (mas também entusiástica), do que podemos chamar «o princípio do compromisso». Não excluindo, naturalmente, os princípios de quem os tem e as diferenças de quem aceitou comprometer-se com a sua assinatura.

Com a noção de ter sido algo egoísta na escolha dos alguns temas e na não inclusão de outros, concluo com algumas palavras sobre o conjunto do livro. Entre nós, a edição da autoria de protagonistas da política ativa tem sido extremamente prolífica. Raro é o mês em que não saem três ou quatro títulos, geralmente ambiciosos e distribuídos por grossos volumes de muitas páginas, destinados a condicionar, de forma supostamente monumental, um certo grau de reconhecimento público do autor.

Este volume é, nas suas ricas 158 páginas, o contrário de tudo isso. É como um vivo diário de bordo dos «tempos interessantes» (a expressão é roubada à autobiografia de Eric Hobsbawm) que começámos a viver no último ano. E, sem procurar fixar doutrina ou atestar qualquer protagonismo, ficará como um instrumento de trabalho imprescindível para quem, no presente, deseje entender os novos rumos do PS, da esquerda e de Portugal. E para quem, no futuro, se dedique a fazer a história destes dias de mudança e de expectativa. Depois dos quais, aconteça o que vier a acontecer, nada será como dantes.

Há uma observação muito citada, escrita por um certo autor alemão em 1845, que diz isto: «Até aqui os filósofos apenas se dedicaram a interpretar o mundo; resta, de agora em diante, transformá-lo.» O autor chamava-se, evidentemente, Karl Marx, e nunca deixou de combinar a importância da teoria política com a a análise objetiva do seu próprio tempo. Não sei se o Porfírio Silva se considera marxista, e também não vou cometer a deselegância de lhe perguntar isso – aliás, hoje somos quase todos, mesmo sem o saber, tão herdeiros de Marx como de Platão, Descartes ou Darwin –, mas penso que se trata de um bom método.

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