Os vulgares, os cromos e os espertos

Uma matéria destacada esta semana pelo Público e pela Visão chamou a atenção para um livrinho com o expressivo título Faz o Curso na Maior. O subtítulo, programático, merece também a atenção: Estuda o Mínimo, Goza ao Máximo: Os Conselhos de um Professor Universitário. Nuno Ferreira, 32, o autor, é-o ou foi-o, ao que declara no Instituto Politécnico de Setúbal, no Instituto Politécnico Autónomo, na Universidade Lusófona e no ISCTE, e pretende, aos olhos do público leitor e potencial comprador da «obra», fazer valer o currículo de sucesso que o levou a ascender da condição de aluno calão à de docente e, hoje, à de «especialista em banca e corporate finance numa das mais importantes consultoras estratégicas do mundo». Nuno foi, como reconhece, o protótipo do aluno preguiçoso e sem vontade de estudar, que no entanto teve a presciência de saber diferenciar muito bem três tipos de estudante, escolhendo de entre eles aquele que lhe convinha personificar: o vulgar, que pouco estuda, nunca terá grandes notas e jamais irá longe; o «cromo», o «pobre marrão», que segundo ele apenas vive para o estudo; e o esperto, aquele que, tal como ele, passou os anos do curso a faltar às aulas, a passar manhãs na cama, a ficar no bar da faculdade a jogar às cartas, a beber imperiais numa cervejaria e a ir a festas atrás de festas, organizando até algumas e ainda com tempo para praticar desporto com regularidade.

O que pretende com este livro, concebido com a ajuda do antigo colega Bruno Caldeira, é transformar o seu trajeto supostamente meteórico e aparentemente invejável em exemplo, possibilitando a quem o lê a passagem da categoria de vulgar à de esperto, fornecendo receitas para tornar fácil o difícil, e combatendo o que considera serem «os quatro mitos» do ensino universitário: o de que «é preciso ir às aulas para passar de ano», o de que «só passa quem estuda durante o semestre», o de que «é preciso estudar a matéria toda» e, por fim, o de que «um bom aluno não usa cábulas». E como os mitos só podem ser combatidos com a realidade, não é preciso dizer que propõe sem pestanejar o oposto de tudo isso.

A «obra» tem perto de duzentas páginas, correspondendo ainda a muito esforço de leitura para o padrão de leitor a que se destina. No entanto, Ferreira e Caldeira facilitam-lhe a tarefa, espaçando as linhas, criando espaços em branco e traçando uns esquemas que desimpedem bastante a leitura, para que seja possível entrar diretamente no que é importante sem ter de fazer um esforço minimamente parecido com estudo. Alguns conselhos são essenciais para combinar a possibilidade de completar o curso com uma nota boa ou razoável, sem ter de trabalhar muito para isso: ir só a aulas fulcrais, oferecer boa impressão ao professor (um elogio da «manteiga»), fazendo amigos que podem ajudar com apontamentos ou dicas na altura do exame, despachando algumas cadeiras em avaliação contínua por estas poderem ser avaliadas com trabalhos («feitos» sabe Deus como e por quem), lendo apenas a bibliografia realmente importante, aquela que se sabe ser controlada pelo professor. E captando ideias gerais sem perder tempo com minudências, ao que se juntam outros conselhos pertinentes, como «escrever o que o professor quer ler» sem a veleidade de ter ideias próprias, implicitamente nefastas. O rol é extenso e nunca perde de vista esse objetivo magno de, como dizem, «ter sucesso académico sem abdicar da vida social que só a universidade permite».

Os autores partem entretanto de dois pressupostos errados, que pelo texto se percebe terem bastante dificuldade em compreender nos seus traços mais substanciais. O primeiro é o de que quem ama o conhecimento, quem se interessa pelo estudo, quem se sente feliz a aprender e a ensinar, é um sujeito um pouco anormal, que não pode gostar de se divertir, de beber uns copos, de fumar uns charros, de dançar, de namorar, de praticar surf, rir e contar piadas. Como será possível provar a tal estirpe de pessoa que há tanta gente, estudantes universitários, que fazem isso tudo, mas tudo mesmo, e ainda assim «perdem tempo» com livros, filmes, espetáculos, concertos, exposições, debates, cursos, seminários e outras atividades próprias de «cromos»? O segundo pressuposto tem a ver com uma noção utilitarista do conhecimento, centrando-o em metas, em objetivos e «competências» muito precisos, para exibir e não para usar, e não na densidade dos saberes e da capacidade analítica e crítica que permitem passar além da mera reprodução de uma sabedoria básica. Um «conhecimento» ao qual se atribui uma nota «para passar» mas que não prepara para a cidadania nem para a vida pessoal e profissional. Como explicar isto aos autores deste vómito em papel e àquelas pessoas que o vão tomar a sério?

Mas tudo isto seria menos grave e até um pouco patético não fossem duas circunstâncias dramaticamente reais. A primeira, é que este tipo de discurso se destina a uma percentagem muito significativa de estudantes que chega hoje à universidade, e, tantas vezes impreparada ou sem meios, faz o seu curso no desconhecimento da dimensão educativa e humana, a par da técnica e funcional, dos saberes que o ensino superior lhe permite obter. A segunda é a realidade do atual ensino universitário, seguindo esse modelo «bolonhês» que, acompanhando a introdução positiva de uma maleabilidade que antes não existia, foi ao mesmo tempo ampliando o facilitismo, separando mais os professores dos alunos, reduzindo o tempo de preparação, fazendo perder a profundidade, e afastando gradualmente da universidade e do ambiente estudantil a ligação que estes deveriam ter a um entendimento pleno, sustentado, participativo, e no fundo humano, do mundo. Ferreira e Caldeira pretendem aproveitar-se deste défice para objetivos bem prosaicos e provavelmente ganharão a pequena aposta. Talvez por isso sorriam para a fotografia nos seus cinco minutos de fama.

    Ensino, Olhares.