A «linha justa», a esquerda e a direita

Na esquerda política, historicamente erguida a partir da contestação da ordem tirânica e injusta do capitalismo, tem-se mantido uma posição dominante de impaciência ou de desprezo perante a inclusão efetiva da diferença. Em Portugal, é verdade que todos os seus partidos e movimentos declaram justamente o contrário, mostrando sempre vontade de se abrirem à integração de pontos de vista e de cidadãos reputados como «independentes». Todavia, estas têm como característica indispensável, para cumprirem o papel que lhes está destinado, o fazerem com que as suas provas de independência jamais contrariem a «linha justa» traçada pelas direções. Nestas condições, deixam de ser as pessoas e as suas ideias a ser integradas, sendo antes o seu corpo e a sua voz que são requisitados em nome da estratégia ou da campanha do momento. Pode então ter-se toda a razão, mas se essa reserva é ultrapassada e se diverge explicitamente dos procuradores da linha que decide, se se defendem em público posições que a contestam, é-se silenciado ou, no limite, combatido. Diga-se aquilo que daí para a frente se disser, ou tomem-se as posições que se tomarem, a marca infamante fica gravada como uma tatuagem. E muitas vezes deixa de haver lugar para essas pessoas nas fileiras. Conheço ou conheci algumas.

Dir-se-á que esta é uma atitude normal, dado que, venha de onde vier, a maioria das pessoas não gosta, por muito que o negue, de ser contrariada nos seus hábitos e nas suas certezas. No que diz respeito às escolhas diárias de cada um, esta característica não é grave. Mas já toma outro peso quando se transforma em norma de política na partilha coletiva de atitudes. Na realidade, não encontro provas continuadas e consistentes de efetiva tolerância nas áreas da esquerda com as quais tenho partilhado e continuo a partilhar uma grande parte das convicções, dos objetivos e das causas. Ora, se tal acontece tantas vezes na abordagem da afirmação individual e pública da divergência – calando posições, evitando debater sem ser à maneira leninista, sob a forma de contra-ataque, excluindo do convívio, por vezes caluniando, quem fala em tonalidade divergente – como é possível preparar os coletivos para estratégias de aproximação e de unidade política tendentes a transformarem o presente? Ou falar em nome de uma democracia verdadeira, melhorada?

É claro que as posições partidárias requerem identidade e coesão para serem eficazes. Os comunicados de imprensa ou as declarações de princípios não podem ocupar-se com a enumeração das posições pessoais, muitas vezes minoritárias. Mas já é muito mau que os militantes individuais recusem dizer de uma posição discrepante que não concordam com ela mas que é importante ouvi-la, ou que aquele que a defende poderá ter razão. Fazem-no, muitas das vezes, por uma malformação política assente na presunção de que existe uma «verdade histórica» e que é missão da esquerda interpretar o seu sentido e alcançá-la sem hesitações. Mas fazem-no também por um dos males estruturais dessa mesma esquerda que se traduz na diluição do pensamento e da liberdade de cada um num projeto coletivo que supostamente deve ultrapassá-los. Um dos resultados deste processo é a alienação constante de cérebros e de vontades, desmobilizados porque inoportunos. Outro resultado, bem mais grave, tem a ver com o facto de, como se sabe, a direita democrática não ter problema algum em ser pragmática e em conciliar as diferenças, em alguns casos enormes, que geralmente, em nome dos seus interesse fundamentais, sabe integrar num todo dinâmico. Neste caso, para uma parte da esquerda, há um certo grau de intransigência e de dogmatismo que cava a sua própria sepultura. Tomar consciência desse erro básico, ou dessa doença crónica, é o primeiro passo para inverter a tendência. Não confundindo a força dos princípios com a teimosia das certezas.

    Atualidade, Opinião.