Esmagados pelo terror

Kazimir Malevich, «A Cavalaria Vermelha» (1928-1932). Em 1929, acusado de «subjectivismo» na imprensa, Malevich foi expulso das funções que ocupava, preso e torturado. Morreu só e na miséria em 1935.

Tradução de um artigo de Julia Luzán publicado na secção de arte do El País Semanal de 16 de Outubro de 2011. Sobre a exposição La Caballería Roja. Crea­ción y poder en la Rusia soviética de 1917 a 1945. Se for a Madrid até 8 de janeiro poderá vê-la no Centro Cultural La Casa Encendida. Informação detalhada a obter aqui. E pode clicar aqui para obter o programa em pdf.

Outubro de 1917. Ano zero de uma nova era. A revolução russa triunfara e o mundo inteiro assistia, entre o entusiasmado e o teme­roso, ao nascimento de um Estado que saudava um novo tipo de homem, um novo humanismo. Lenine estava no vértice, velando sempre, apesar dos acontecimentos se sucederem a uma velocidade estonteante. Os bolcheviques começavam a escrever a sua parte da História e era necessário dotá-la de sím­bolos, de imagens, de palavras. Os artistas, «engenheiros da alma», como os batizaria Estaline, meteram as mãos à obra enchendo a nova Rússia de ciência, técnica, livros e arte.

Mas quais foram verdadeiramente as relações no interior da elite de homens e de mulheres que se colocaram então às ordens da revolução e do comunismo? Uma ambiciosa exposição, La Caballería Roja. Crea­ción y poder en la Rusia soviética de 1917 a 1945, que acaba de abrir em Madrid, analisa o modo como desde a morte de Lenine, em 1924, até à de Estaline, em 1953, habitante algum da URSS pôde permanecer à margem da ideologia. Para explicá-lo com poderosas imagens, Rosa Ferré, a comissária da mostra, concebeu um itinerário através de mais de 300 materiais muito diversos, desde obras-primas da vanguarda pictórica até certas peças-chave recolhidas da estética do realismo socialista. Os protagonistas são escritores, Anna Akmatova, Mandelstam, Pasternak, Maiakovski, Babel, ou artistas como Kandinsky, Chagall, Malevich, Rodchenko, Klucis e Deineka. La Caballería Roja é uma viagem até ao talento criativo das três primeiras décadas do século XX na Rússia so­viética, uma época de enorme energia criativa marcada também pela mais absoluta repressão.

Quando irrompeu a revolução, em 1917, três quartos da população russa era constituída por camponeses. Lenine precisou então de uma elite que ajudasse a criar «cidadãos ativos», e durante os primeiros anos do século XX, numerosos intelectuais, ébrios de entusiasmo, puseram em andamento uma potente maquinaria de propaganda multimédia. O Estado soviético utilizou para o efeito todo o seu engenho, conservado até ao momento em que Estaline resolveu si­lenciar qualquer veleidade criativa. A partir daí, «cortavam-se pessoas por quotas» a partir da cruel sentença determinada por duas palavras-chave: sabotador e contrarrevolucionário.

«Vigiavam-nos estrelas da morte, / e, inocente e convulsa, a Rússia estremecia / sob botas ensanguentadas, sob / as rodas de negros furgões / de madrugada vieram buscar-te. /E eu fui atrás de ti, como num luto». Assim entoava a poeta Anna Akmatova o seu do­loroso Requiem, para o seu filho e os seus amigos, esmagados pelo regime de Estaline. Milhares de escritores foram executados durante os anos do Terror Vermelho. «Quando chegavam os homens vestidos de couro, era o fim que principiava…». Os intelectuais que não emigraram ou não foram expulsos circularam então pela nova ordem como elefantes numa loja de loiça. A «geração da idade de prata», a de Akmatova, Tsvetaieva, Mandelstam, Pasternak, Bulgakov, foi perseguida, isolada e destruída, foram assassinados ou deporta­dos quando já não serviam os fins determinados para a cultura socialista. A abertura nos anos noventa dos arqui­vos literários do KGB mostrou o horror daqueles crimes con­tra a intelligentzia, cometidos por Lenine e Estaline.

O cérebro de Máximo Gorki, conservado no Instituto Neuro­lógico de Moscovo, pesa 1.420 gramas. O de Maiakovski, 1.700. O de Lenine, 1.340. Em que cabeça poderia caber a ideia de guardar tais despojos como se pertencessem a um panteão da genialidade. Provavelmente só na de um homem doente de poder como Estaline, «o montanhês do Kremlin, com olhos de barata», como o descreveu Mandelstam num dos seus poemas. Estaline planava por cima de todos, à caça dos mais pequenos detalhes. Jogava com os seus «camaradas» como se fosse Deus. Um exemplo. A polícia abriu em 1922 um processo ao escritor Bulgakov como «ideólogo da maléfica burguesia contemporânea». Esteve a um passo de ser deportado por negar-­se a escrever sobre «heróis de casaco de cabedal e de metralhadora, heróicos comunistas». Farto da sua situação de penúria, escreveu uma carta a Estaline. Nela pedia que lhe dessem um trabalho ou que o deixassem sair da União Soviética. Não obteve resposta, até até que um dia o seu telefone tocou e uma voz lhe disse: «Vai falar consigo o ca­marada Estaline». Decorreu então uma das conversas mais surrealistas daquele período negro: «Precisa realmente de partir para o estrangeiro? Será possível que esteja tão farto de nós?», perguntou-lhe Estaline. Ao que Bulgakov respondeu: «Meditei muito sobre o assunto e cheguei à conclusão de que um escritor russo não pode existir fora da sua pátria». Dias depois, Estaline chamou-o ao Kremlin e ofereceu-lhe um pequeno emprego. Mas Bulgakov nunca mais pôde voltar a publicar.

Rosa Ferré procurou conjugar nesta exposição a genialidade da arte e a baixeza da repressão. «Quis expor a complexidade da época, não apresentar as revoluções propostas por grandes nomes como Kandinsky ou Malevich. Estimulou-se a ideia do intelectual como um artista que se junta à revolução e depois os políticos acabaram por traí-la. Mas existiu alguma simbio­se. E de facto foi uma oportunidade para muita gente poder trabalhar a expensas do Es­tado. Muitos destes artistas não foram aliás absolutamente cínicos, acreditaram verdadeiramente no processo em curso, mas também foram vendo aos poucos até onde os podia levar a revolução».

Esta exposição centra-se nos anos que vão da cavalgada da primeira cavalaria vermelha durante a guerra civil (1918-1921) até à participação na Segunda Guerra Mundial (1941-1945). No entusiasmo inicial da revolução, artistas como Kandinsky, Lissitszky, Rodchenko ou Chagall apontaram o caminho da abstração. As obras de Maiakovski ou os desenhos de Natan Aktman para a representação da tomada do Palácio de Inverno – um espetáculo de massas com milhares de participantes – refletiam a eficácia da propaganda. Também são mostrados os avanços no campo da música, como os do físico Theremin, inventor de um dos primeiros instrumentos musicais eletrónicos, uma caixa com duas antenas que teve o seu auge em filmes de ficção científica e de terror de Hollywood, antes ainda do aparecimento do sintetizador. Nos anos da revolução palpitava o engenho, os avanços em todos os campos. Incluindo a viagem a Marte, que apare­cia no horizonte da nova Rússia como um sonho atingível.

Com a morte de Lenine, tudo mudou. Nos inícios de 1928, a era dos planos quinquenais, o intercâmbio de ideias foi deixado para trás e instaurou-se um nacionalismo feroz. A linguagem bolchevique foi introduzida na sociedade como norma de expressão. Popularizou-se o termo sabotador para falar do operário pouco entu­siasta. Por oposição ao stakhanovista, como referência a Stakhanov, o mineiro que conseguira duplicar a produção. Aburguesar-se tornou-se delito e conspirar contra o povo era agora candidatar-se à prisão. Os trabalhadores ocuparam o lugar dos santos no imaginário público, e os inimigos de classe, o do demónio.

Na exposição desmontam-se alguns mitos. Como o de um Estaline ignoran­te, enfrentando sempre um Le­nine intelectual. Podem imaginar o sanguinário ditador lendo romances, ou choramingando enquanto via um filme? Pois façam-no. Os seus gostos cinematográficos combinavam a exaltação pa­triótica de Eisenstein e os filmes de aventuras, sobretudo de personagens históricos com os quais se identificava, como Ivan o Terrível. Gostava teatro – assistiu 15 vezes a uma peça de Bulgakov – e, como bom georgiano, era um amante das canções populares e da mú­sica patriótica. Tudo o resto, no entanto, detestava. E ainda assim era o grande diretor da cultura.

Os intelectuais que apoiaram Estaline acabaram a pouco e pouco por abrir, sem de tal se aperceberem, o caminho para o seu próprio apagamento. Nos finais dos anos trinta, as purgas e os processos que decorreram em Moscovo entre 1936 e 1938 deixaram cinco milhões de presos, sete milhões de deportados, um milhão de executados e dois milhões de mortos nos campos de deportação. No Primeiro Congresso dos Escritores, realizado em Moscovo em 1934, participaram 700. Mas só 50 deles sobreviverem para poderem estar de novo no Segundo Congresso, decorrido em 1954. Cerca de 80% dos protagonistas da exposição La Caba­llería Roja foram aliás fuzilados, degredados ou si­lenciados. Como o escritor Isaak Babel. Preso em 1939, foi torturado, acusado de espionagem devido aos seus contactos com André Malraux, declara­do «inimigo do povo» e fuzilado a 27 de janeiro de 1940. Babel, como Boris Pilniak, um dos escritores soviéticos mais lidos e popu­lares, foi dos primeiros a desvendar a face oculta da revolução. Pilniak viu nela um remoinho sanguinário e chegou a retratar Estaline como «o homem que nunca se curvava» colocado à fren­te de una raça meio loba, meio humana.

A lista das vítimas do Terror é imensa. «Penso e volto a pensar. E não posso enten­der nada. O que está a acontecer? Como é que, de repente, temos tantos inimigos? Todos são gente que conhecemos desde há anos, que viveram connosco. E por uma qualquer razão desaparecerem por detrás das grades e confessaram instantaneamente que são inimigos do povo, espiões, agentes dos serviços secretos estrangeiros. Até onde irá isto? Creio que estou a enlouquecer». Assim se lamentava Mikail Koltsov, o jornalista que foi correspondente do Pravda durante a Guerra Civil espanhola, homem de Estaline em Espanha e o personagem que Hemingway retratou em Por quem os sinos dobram, após ver desaparecerem, um após o outro, a quase todos os seus colegas. Koltsov foi fuzilado em 1940.

Uma viagem de 40 minutos por La Caballería Roja é um mergulho naquela época. Ocasião para descobrir o talento de figuras pouco conhecidas em Espanha e que abriram a porta a novíssimas experiências. Como a Sinfonia das sirenes das fábricas, uma composição escrita por Arseni Abramov para comemorar o quinto aniversário da revolução russa em Baku, a atual capital do Azerbaijão. Em país algum se concentrou tanto talento como na Rússia so­viética das primeiras décadas do século XX. Artistas e intelectuais puderam criar obras e projetos de uma modernidade desnorteante e com um entusiasmo que os tornou realmente únicos.

    Artes, História.