A música, o silêncio

silence

Benjamin, ele de novo, lembrou a distância, ou mesmo o conflito, que ocorre entre a obra de arte criada manualmente, envolta nessa aura que associou a um fulgor etéreo, imaterial, advindo da sua existência única, e aquela outra, vulgarizada, afastada da dimensão do sagrado porque sujeita a um processo de «reprodutibilidade técnica», de multiplicação mecânica, como aquela projectada, no seu tempo, principalmente pelo cinema e pela fotografia. O recuo da dimensão ritualizada da obra de arte, ou, se se preferir, a reconsideração do próprio conceito de aura, não possuíam contudo, para o filósofo, uma dimensão necessariamente negativa, como expressão de uma qualquer decadência, definindo antes a entrada num universo de tipo novo, mais preenchido e ruidoso, no qual se vai perdendo esse instante singular em que a obra de arte emerge do silêncio e apenas dialoga com o interlocutor privilegiado. Este jogo de oposições e proximidades entre o silêncio criador, acessível a uns quantos, e um ruído que aproxima a criação das pessoas comuns, põe-se de uma forma particularmente aguda no contexto actual de multiplicação da música gravada escutada em estado de solidão.

Um artigo publicado há tempo na revista nova-iorquina n+1 dá conta de uma mudança dramática sobre a qual o seu autor, Nikil Saval, projecta um olhar muito céptico. Recorda como a invenção do disco e do gramofone, em 1887, fez com que o acto de ouvir música deixasse de ser obrigatoriamente social: podia agora escutar-se música multiinstrumental em total estado de solidão. No entanto, no trajecto da música gravada que se seguiu foi possível partilhar em múltiplas situações o gosto colectivo pela música e até a sua transformação em instrumento de mobilização política, como aconteceu com a intervenção da nova música popular propagada durante os anos sessenta. Foi no entanto também nessa altura que se generalizou a experiência daqueles que Saval, dando os exemplos de George Steiner e de Allan Bloom, chama de «snobes amadores da música clássica», académicos fechados nos seus apartamentos que recorreram a Bach ou a Schubert como factores de distinção em relação ao «ruído» dessa música popular que, vinda dos meetings políticos e das festas juvenis, perturbava a quietude dos campus universitários.

A grande e perigosa viragem fez-se no entanto com a vulgarização dos iPods e outros leitores de mp3. Ao contrário do Walkman, que nunca se livrou da imagem de gadget para adolescentes, o iPod, pela qualidade da reprodução, facilidade de uso e baixo custo, permitiu aos adultos e a toda a gente afundarem-se num universo de solipsismo, construindo um território de sons, uma «banda sonora» não partilhada, que fez com que o indivíduo desse um passo mais no distanciamento da vida privada em relação às experiências partilhadas em colectivo. As motivações são múltiplas e algumas delas permitirão até um certo retorno ao «ambiente aurático» concebido antes da fase de reprodutibilidade mecânica: em espaços cada vez mais invadidos por música de plástico, vulgar, brega ou pimba, que saltou dos arraiais populares ou das pistas de carros de choque para as mais importantes emissoras de rádio e as estações televisivas, a escolha musical feita à medida e transportada no bolso permite a conservação de uma área própria de gosto centro da qual pode sobreviver um padrão de música menos subordinado às imposições do mercado e às distorções suscitadas pelo consumismo. Mas ao mesmo tempo desaparece a noção da obra de arte, neste caso da peça musical, experimentada em colectivo e partilhada, que é substituída por uma espécie de psicotrópico indutor do escapismo.

Nada disto corresponde a uma fatalidade. O autor destas linhas é, ele próprio, um utilizador crónico e obstinado deste tipo de instrumento de reprodução, integrando-o na sua vida como ferramenta de qualificação do quotidiano. Tem, no entanto, a consciência de que algo perdeu pelo caminho, chegando ao ponto de, como já não tira o disco da capa ou abre a caixa em baquelite da velha cassete, ser por vezes incapaz de identificar a música que ouve e quem a interpreta. Para o saber precisa de segurar o aparelho e, sem tirar os headphones, de consultar no monitor digital as referências que lhe faltam. Sabe que isso o afasta do autor que criou a música que ouve. Mas sabe também que existe uma tecla de pausa/stop que por um simples acto de vontade o reconduz ao silêncio necessário para ouvir o universo «lá fora», para o reconduzir ao social. Aqui, como em tudo, o problema não reside na alteração da experiência, mas sim na uniformização da mesma e na dependência. Muitas pessoas, em especial muitas das pertencentes à geração que cresceu já mergulhada no ruído, têm dificuldade em lidar com a combinação dos dois mundos. Seguem muitas vezes a via mais fácil, aquela que naturalizaram, que consiste em viver imersas no ruído. Sem conheceram as virtualidades criadoras, e perpetuamente auráticas, do silêncio procurado e consentido. A solução, uma vez mais, está na experiência da liberdade e na capacidade para confrontar aquilo que nos é imposto, ouvidos adentro, com o que nos deixa seguir o caminho que só nós escolhemos. E este começa inevitavelmente pelo princípio. Isto é, pelo silêncio.

    Música, Olhares.