República, Estado e Igreja revisitados

Jesuíta
Medição antropométrica da cabeça de um jesuíta.

Se tivermos em conta os contributos aparecidos nos últimos dois anos em redor da passagem do seu centenário, a República Portuguesa saída do 5 de Outubro de 1910 é agora um dos períodos da vida nacional mais inquiridos pelos historiadores. Esta circunstância não invalida porém – é esse aliás o principal interesse de toda a História viva –, a possibilidade de ocorrerem interpretações inovadoras, por vezes a contracorrente, que sistematicamente alertam para os limites de leituras estereotipadas e condicionadas por respostas previamente escolhidas. Aquilo que de marcadamente inovador contém A Separação do Estado e da Igreja, de Luís Salgado de Matos, é pois a sua capacidade, apoiada numa investigação pormenorizadíssima e numa argumentação liberta de apriorismos, para ler com outras lentes aquilo que já foi repetidamente abordado e sobre o qual tudo pareceria estar dito e escrito.

O assunto, como o título indica, são as circunstâncias, as peripécias e as consequências que envolveram a aprovação, em 20 de Abril de 1911, da lei destinada a separar o Estado e as Igrejas, tendo como imediato resultado a anulação do estatuto de religião oficial até aí detido pelo catolicismo. No entanto, e aqui reside o aspecto nuclear no qual se firma a dimensão de inovação deste estudo, se a separação não foi querida pela Igreja católica, também o não foi pelo Estado. Porém, uma vez iniciada, ela «ultrapassou-os, obrigou-os a aplicarem estratégias de luta, dividiu-os a ambos, e reformulou-os em termos que, à partida, nem um nem outro tinham imaginado.» Mais: sectores houve, de um e de outro dos lados, que procuraram sempre plataformas de entendimento, tendo sido o seu falhanço a proporcionar e a radicalizar o confronto. Aquilo que estas 700 páginas documentam de uma forma detalhada e sistemática é pois uma revisão das leituras dominantes a propósito de um Estado jacobino e de uma Igreja ultramontana envolvidos numa luta de morte. Para o conseguir o autor avança mesmo pela difícil tarefa de desbravar silêncios, anotando o valor do não-dito ou do que ficou nas entrelinhas.

As conclusões, apresentadas sobre a forma de dodecálogo, não se limitam, como seria de esperar numa obra de Salgado de Matos, a sumariar o livro, apontando sobretudo para um conjunto de resultados do seu trabalho de releitura do período considerado. Algumas são particularmente perturbadoras da «paz» de uma historiografia da República, habituada a ponderar a época como a de uma luta entre o bem e o mal em relação à qual por vezes se toma partido. Afirmar, por exemplo, que os católicos e os partidários de Afonso Costa reescreveram desde o início o historial da separação, extremando a heroicidade de um dos lados, não será propriamente comum. Argumentar que a perseguição dos católicos foi moderada e que a Igreja «recorria à sua própria violência simbólica», também não. Além disso, dizer que a lei dividiu internamente tanto os católicos quanto os republicanos, enquanto se sublinha que a lei da separação acabou por reforçar a Igreja católica portuguesa, contribui de facto para dar-lhe consistência política. O autor sugere ainda que, com diferentes protagonistas, a «questão religiosa» que marcou a vida de toda a Primeira República teria provavelmente menores índices de dramatismo, não determinando, como acabou por acontecer, a morte do regime.

Luís Salgado de Matos, A Separação do Estado e da Igreja. Concórdia e Conflito entre a Primeira República e o Catolicismo. Dom Quixote. 720 págs. Publicado na LER de Junho de 2011.

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