O conflito interminável

Acre

Para Homero gregos e troianos partilhavam valores idênticos, mas para as gerações que definiram as suas identidades e as suas expectativas culturais em torno do mito que nasceu com a Ilíada, a queda de Tróia marcou o princípio de um combate pela supremacia travado entre dois povos e separou definitivamente duas maneiras de viver. Em Mundos em Guerra, Anthony Pagden conta como numa certa manhã, ao pequeno-almoço, a sua mulher, a classicista Giulia Sissa, observando no jornal uma fotografia na qual se podia ver um grupo de iranianos prostrados em oração, comentou: «Que irónico! Foi exactamente este hábito de prostração dos antigos Persas que tanto horrorizou os Gregos.» Neste livro procura-se justamente historiar a génese e o trajecto do afastamento e da incompreensão entre «Ocidente» e «Oriente», ainda tão presente e ateada por estes dias.

A possibilidade de um «choque de civilizações», sugerida por Samuel T. Huntington logo após o termo da primeira Guerra do Golfo, foi popularizada, descontextualizada da argumentação do americano, não como metáfora mas enquanto possibilidade, materializável num conflito apocalíptico entre o Ocidente e o Islão, e muitos foram os autores e comentadores que recorreram ao filão nos seus argumentos. Olhando apenas para o título, Mundos em Guerra parece avançar na mesma direcção, mas rapidamente percebemos que o autor não tem esse propósito. Padgen é um reputado historiador da UCLA, e apesar de não manifestar propriamente uma grande predilecção pelo papel da religião na clivagem cavada ao longo de séculos, mostra ser um académico preparado para escrever, apoiado numa dose notável de conhecimento e de reflexão, sobre os múltiplos contornos e os sucessivos episódios que ao longo de 2.500 anos essa separação foi tomando, estabelecendo uma oposição entre europeus e asiáticos inicialmente localizada mas depois planetária. Um trajecto documentado num texto absorvente, no qual a guerra – dos Balcãs da idade clássica ao Afeganistão contemporâneo, tendo a época das Cruzadas como instante particularmente sangrento e traumático – é sempre o princípio e o fim de tudo, causa e consequência de uma sucessão de disputas agravadas, muitas vezes, mais pela incompreensão e pelo medo, culturalmente estabelecidos, do que pela avidez da conquista.

No final, o autor deixa uma frase que se não é de pessimista é a de um céptico: «Enquanto houver quem insista que isso faz sentido, a antiga luta entre «Oriente» e «Ocidente» vai continuar. Hoje, pode resumir-se a ataques terroristas ou a manifestações públicas de ódio, mas nem por isso deixa de ser tão azeda e tão inútil como o foi durante os últimos dois milénios.» De facto, a divisão permanece, colocando, de um dos lados, os porta-vozes das democracias ocidentais, convencidos ainda, não muito menos que na época das Luzes, de que os seus valores e programas políticos podem ter uma aplicação universal. Do outro, um Islão combativo, por vezes furioso, que frequentes vezes se lê a si próprio como uma comunidade de crentes destinada a alcançar uma dimensão universal. Parece, pois, que regressámos ao ponto de partida. Que retornámos a Tróia.

Anthony Padgen, Mundos em Guerra. 2500 anos de conflito entre o Ocidente e o Oriente. Tradução de Miguel Mata. Edições 70, 596 págs. [Publicado originalmente na revista LER de Junho]

    História.