Sapatos vermelhos

Diante do recém-editado livro autobiográfico de Zita Seabra (ZS) é muito difícil sustentar um registo de equidade crítica quando a maior parte do que lemos insinua uma rejeição que nem sempre é boa conselheira. Como seria de esperar, a recusa apriorística da possibilidade de ler o livro instalou-se, de imediato, entre pessoas mais ou menos próximas do Partido Comunista ou dos sectores situados à esquerda do PS. E muitas daquelas que o leram, fizeram-no sobretudo à procura das imprecisões ou dos juízos que permitissem depreciar o que a autora escreveu. Acontece, porém, que contando-me entre os portugueses que se distanciaram no passado e se distanciam hoje das posições públicas de ZS – relembro apenas o seu apoio à campanha pelo Não no referendo sobre a IVG e a sua actual assumpção como parte da ala direita do PSD –, me interesso também pela história recente. Tenho, por isso, uma certa obrigação de me esforçar para compreender a utilidade deste volume.

Livro algum tem necessidade de justificar a sua existência. Porém, não sendo analista, historiadora ou política no activo com um papel relevante, não se encontrando ainda em idade de fazer um «balanço de vida», não tendo nada de particularmente novo para contar e escrevendo até com alguma dificuldade, para quê dar-se a autora ao trabalho de falar publicamente sobre o seu próprio passado? Deixarei para o final deste texto uma tentativa de resposta a esta questão.

Foi Assim relata a infância, a juventude e a vida adulta de ZS sensivelmente até à sua expulsão do PCP, ocorrida em Janeiro de 1989, centrando-se particularmente na experiência de clandestinidade, na intensa actividade pública que manteve nos anos que se seguiram a 1974 e no processo que levou ao seu isolamento político e pessoal dentro do PCP. Todavia, de tudo isto, de um tempo tão intenso, de uma relação tão estreita que manteve com a intervenção dos comunistas na sociedade, nada do que ZS conta se mostra particularmente novo ou interessante, tanto ao nível dos processos como dos métodos. A referência que faz à vida na condição de clandestina, à actividade na UEC, ao seu papel durante o PREC e na Assembleia da República, não contém algo que não se encontre já bem documentado e que, provavelmente, apenas interessará a quem estiver fora destes temas e, levado pela campanha mediática em redor do livro, se decida a comprá-lo. Presumo, no entanto, que, de entre este eventual núcleo de leitores, poucos serão aqueles que o conseguirão ler até ao final. Ou, pelo menos, que serão capazes de o ler com a devida atenção.

De facto, o texto encontra-se escrito de uma forma absolutamente surpreendente para quem o sabe da responsabilidade de uma pessoa que rompeu com o PCP há já quase vinte anos e tem vindo a tomar posições cívicas que a distanciam claramente dessa área de origem. No entanto, a linguagem utilizada, a rígida ética que lhe subjaz, o jargão utilizado na análise do tempo e dos factos aos quais se reporta, são impressionantemente próximos daquele que foi, e em certa medida ainda é, o discurso-padrão dos comunistas. Torna-se quase insuportável para um leitor consciente deste aspecto o modo como ZS usa a «língua de madeira» comunista para falar, de uma forma que se pretende analítica, da sua relação com a experiência de luta e de organização do PCP. Muitas frases revelam essa fala ancorada no passado, feita de clichés, liturgicamente repetidos ao longo de décadas e que, estranhamente, a autora mantém intactos, deles se servindo a todo o momento: «comportamento exemplar» (p. 53), «eivado de irrealismo e de voluntarismo» (p. 65), «um camarada altamente responsável» (p. 71), «um camarada de confiança» (p. 83), «teve bom porte na PIDE» (p. 153), «regressou com uma ampla publicidade» (p. 163), «era uma revolucionária profissional, uma verdadeira bolchevique» (p. 187), «os controleiros das faculdades e os militantes mais destacados» (p. 211), «tal como Lenine ensinou e nós aprendemos» (p. 235), «Amílcar Cabral gozava de prestígio» (p. 250), «só a verdade nos libertará» (p. 436). E a listagem poderia ser multiplicada por dez, quinze ou vinte vezes.

Acrescento ainda este fragmento que parece tirado de uma qualquer cartilha ou de uma proclamação do PCP da era pré-Abril: «Ia finalmente passar à acção directa e preparar a queda do regime através da revolução democrática e nacional, à qual se chegaria pela insurreição popular armada, primeira etapa da revolução socialista. Só após a instalação da ditadura do proletariado se encontraria o caminho livre para a forma suprema de organização da humanidade: o comunismo.» (p. 151). O mesmo posso dizer da sua explicação do «centralismo democrático», que parece tirada de uma síntese escolar do Que Fazer?, de Lenine (p. 174). ZS não se reverá agora, naturalmente, nestas posições, mas a forma como mantém este conjunto de fórmulas para «explicar às criancinhas» o sentido da crença que partilhou com milhares de outros comunistas portugueses, não só não é abonatório da sua actual capacidade de análise, como, e acima de tudo, define um discurso extremamente equívoco, entediante para quem já as conhece e incompreensível para quem, ao ler isto, delas toma conhecimento pela primeira vez.

Esta maneira de escrever parece-me indissociável do percurso cultural da autora. Todo este livro revela uma formação exígua ao nível das leituras (apenas alguns romances e textos teóricos que qualquer pessoa da sua geração e extracto sociopolítico leu), das práticas culturais específicas (quase exclusivamente confinadas ao gosto interrompido pelo ballet), dos interesses por um saber não instrumental. O próprio conhecimento dos clássicos do marxismo-leninismo se afigura insuficiente para uma pessoa que teve as responsabilidades políticas de ZS, o que é revelado na admiração que ainda hoje nutre por quem o detinha (como José Pacheco Pereira, Miguel Portas e, naturalmente, Álvaro Cunhal) e exemplifica o nível da formação teórica de muitos dos quadros comunistas portugueses. A mesma coisa no que se refere aos gostos artísticos (as referências musicais ou do campo da pintura são de uma banalidade atroz, mesmo para a época, não faltando sequer a referência sacramental à Guernica de Picasso) ou ao gosto pelo cinema, que reconhece ter sido muitíssimo limitado pelas imposições da vida clandestina e que, com toda a certeza, não terá podido recuperar nos anos do PREC. Algo de manifestamente estranho, aliás, para quem, entre 1993 e 1995, foi presidente do Instituto Português de Cinema e do organismo que lhe sucedeu. Não é pois de estranhar que, a dado passo, se refira ao filme Emmanuelle como sendo… «pornográfico» (p. 426).

Uma outra área na qual o desconhecimento de ZS se me afigura chocante refere-se às práticas e aos processos organizativos dos sectores que agrupa na designação canónica, leninista, de «esquerdistas». Esta atitude, muito comum entre a generalidade dos antigos militantes ou simpatizantes do PCP que estiveram ligados ao sector estudantil, não é para mim novidade. Mas perceber esta perspectiva limitada e confusa daquela que foi a sua principal dirigente nos anos finais do regime, é, no mínimo, perturbante. Como o é o não ter lido um pouco, antes de escrever, para se informar melhor.

Já tenho alguma dificuldade em pronunciar-me sobre a parte mais apelativa do livro – a situada no domínio da petite histoire – e que é também aquela sobre a qual se podem colocar maiores dúvidas relacionadas com uma interferência profunda da subjectividade ou um questionamento da veracidade de alguns dos episódios relatados. Não me repugna, confrontando este testemunho com outros (como aquele recentemente publicado por Raimundo Narciso), aceitar o carácter complexo, para não dizer tortuoso, da personalidade de Álvaro Cunhal (o «Camarada» que marcou para sempre a vida de Zita). Nem reconhecer a atitude sectária, frequentes vezes seguidista, da generalidade dos apparatchiks do PCP (a sessão do plenário do Comité Central no qual ela foi expulsa do mesmo, do qual por certo existirá uma acta, é particularmente denunciadora de uma crua incapacidade para se aceitar a diferença fora dos processo do «centralismo democrático» e de se reconhecer o que de «bom» fez uma camarada marcada a partir daquela altura pelo «mal»). Mas grande parte do que se conta – algumas frases e atitudes do «Camarada», a confirmarem-se são particularmente abjectas no plano meramente humano – permanecerá no âmbito do testemunho estritamente individual. Sobre esta fase de ruptura, existem já outros depoimentos publicados – entre eles um livro da própria ZS, O Nome das Coisas, escrito «a quente» e editado logo em 1988 –, bem como uma possibilidade de se obterem relatos de pessoas vivas, que permitirão aferir melhor o processo que a autora descreve.

A leitura encontra-se também marcada por traços de personalidade e de estilo de ZS que, sendo respeitáveis na dimensão da sua idiossincrasia, tornam por vezes penosa a comunicação com o leitor. Desde logo as inúmeras provas de arrogância e de exposição de uma dimensão quase providencial das decisões que foi tomando. «Eu fiz», «eu resolvi», «eu escolhi», «eu decidi» são expressões pouco agradáveis para a cultura democrática ou para a educação de muitos daqueles que a lêem. Um exemplo apenas: referindo-se à altura em que, em 1974, Cunhal se tornou ministro sem pasta do governo, conta ZS: «passei-lhe de imediato o Domingos Lopes para chefe de gabinete». Tanto quanto sei, Domingos Lopes não será propriamente um cachecol ou uma garrafa térmica. A afirmação desta «personalidade difícil» é ainda complementada, negativamente, pela inépcia absoluta para lidar com o humor ou com a ironia: mesmo alguns episódios realmente engraçados que conta são, no discurso de Zita, passados à condição de mais um elemento na enumeração dos factos que relata, sem uma exploração literária que melhoraria o prazer da leitura e a aproximaria um pouco mais de quem a lê. A mesma coisa em relação à vida amorosa e aos afectos, pelos quais passa sem referência praticamente alguma, se exceptuarmos o «sentimento de culpa» que, sendo filha única, de certa forma sente pela separação que deles voluntariamente manteve. Ao contrário daquilo que já li, mesmo a referência a Sita Valles, a notável militante comunista que viria a ser torturada e executada em Angola após o falhanço do golpe militar dirigido por Nito Alves, me parece mais do domínio da admiração do que de uma efectiva amizade. Falo daquilo que percebo pela leitura, naturalmente, não daquilo que Zita Seabra eventualmente sentirá e que, por formação ou por deformação, se esforça a todo o momento por esconder.

Volto então à questão colocada inicialmente. Para que serve afinal este livro da Aletheia, marcado por um grafismo propositadamente decalcado das Edições Avante!, ampliado por uma intensa campanha mediática e colocado nos escaparates melhor situados das lojas da Bertrand e da FNAC? Para ser lido, como escreveria o senhor de La Palisse. Mas quem o lerá? Presumo que, para além de uns quantos interessados na nossa história recente, de alguns quadros partidários, e, por dever de ofício, de um ou outro opinion maker, talvez a parte do público estigmatizada ainda pela cultura do anticomunismo, ou aquela outra que espera encontrar neste livro uma versão circunspecta da má-língua de Catarina Salgado. Sob este aspecto, podem desenganar-se. Pouco lhes interessará a vida da mulher que sempre gostou de usar sapatos vermelhos.

Zita Seabra (2007), Foi Assim. Lisboa: Aletheia Editores. 442 páginas.

Sobre o mesmo assunto (uma ajuda do Miguel Cardina):
Zita e o Camarada [João Gonçalves, Portugal dos Pequeninos] O livro que não se deve ler (1) [João Tunes, Água Lisa (6)] O livro que não se deve ler (2) [João Tunes, Água Lisa (6)] Foi assim, não foi nada, talvez fosse [João Tunes, Água lisa(6)] Os verdes anos de Zita [F. Penim Redondo, Dote Come] Não foi assim [Nuno Ramos de Almeida, Cinco Dias] Novo livro de Zita Seabra. Leitura a não perder [Da Rússia, José Milhazes] Foi assim, mas há sempre alguém que não deseja acreditar [José Manuel Correia, Aparências do Real] Foi Assim com Zita Seabra [Raimundo Narciso, A Grande Dissidência] Zita Seabra – defender o quadrado [Sofia Loureiro dos Santos, Defender o Quadrado] Não, não foi assim (1) [Vítor Dias, O Tempo das Cerejas] Não, não foi assim (2) [Vítor Dias, O Tempo das Cerejas] Não, não foi assim (3) [Vítor Dias, O Tempo das Cerejas] Não, afinal não era assim (4 e último) [Vítor Dias, O Tempo das Cerejas]

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