Palmatoadas

Castigo

Todos ouvimos, diariamente, palavras e expressões que surgem datadas, remetendo para tempos que se vão esfumando. Há dias, quase me ia zangando com um amigo que discordava de um exemplo, adiantado de forma peremptória, que me parece ilustrativo de situações deste tipo. Dizia-lhe eu que, tal como «larápio», também a palavra «gatuno» praticamente caiu em desuso, confinada – pelo menos em Portugal continental – à exígua panóplia de epítetos grosseiros com os quais se costumam brindar os árbitros de futebol. E, além disso, não se escreve ou pronuncia «gatuno», mas sim «ga-tu-no!». O meu amigo, adepto pertinaz da luta de classes e do Vocabulario Portuguez e Latino do Padre Rafael Bluteau, não conseguia conceber um mundo sem «gatunos» (e também sem «amos», outra palavra decaída).

Em situação análoga encontra-se a expressão «erro de palmatória», utilizada por alguns autarcas de província (ainda hoje, na rádio, por um presidente de Câmara), e por Alberto João Jardim, para combaterem determinadas medidas do governo central. Recorro ao Houaiss, que identifica a palmatória, ou férula, como uma «pequena peça circular de madeira com cinco orifícios em cruz e provida de um cabo, usada como instrumento de castigo para bater na palma da mão do castigado». Uma «menina-de-cinco-olhos», pois, utilizada no passado para punir alunos indisciplinados. De acordo com a Wikipedia, «no Brasil, antigamente era costume nas festas de formatura os alunos presentearem os seus professores com palmatórias, como sinal de submissão à autoridade». Actualmente, porém, o seu uso é considerado crime na maioria dos países ocidentais, tendo sido a doce Inglaterra o último país ocidental a aboli-lo, em 1989. Por isso, integrar no discurso político a memória de um tal objecto, se é verdade que pode ser entendido como exemplo de uma «metáfora morta» ao serviço da retórica, funciona também como vestígio de um modelo de autoridade e de um tipo de castigo que sobrevivem, fora da lei, na matriz cultural de quem a invoca. É feio e fica mal, prontos.

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