Pigarrear

tosse colectiva
Gosto de escrever sobre irrelevâncias. Mas, desta vez, prefiro abordar um assunto sério. O tema ocorreu-me quando lia O Anjo Pornográfico, a extraordinária biografia do extraordinário Nelson Rodrigues, publicada em 1992 por Ruy Castro e agora reeditada pela Companhia das Letras. Fala o autor, a dado passo, da chegada da família de Nelson ao Rio, provinda do Recife, e do ambiente com o qual esta deparou na Aldeia Campista, distante subúrbio da cidade que então ainda se não autoproclamava «maravilhosa». Estamos em 1919:

«Era também uma vizinhança que tossia em grupo. Não que fosse uma comunidade de tísicos. O brasileiro é que tossia muito naquele tempo. Qualquer agrupamento numa sala era um pânico. Começava por um solitário pigarro. alguém aderia. Logo se juntavam as tosses secas, os chiados de asma, os assovios de bronquites e, num instante, a sala inteira era um festival de expectorações. Por isto, em todas as salas, em lugar de honra, entronizava-se a escarradeira. Uma escarradeira “Hygea”, branca, de louça, com o caule que se abria em lírio ou copo-de-leite. No resto, a vida era simples.»

À data, convirá que se saiba, eu não tinha nascido ainda. Digamos, porém, que quarenta anos depois já por cá andava. Ora minha memória recua a um tempo no qual ainda por aqui sobrevivia o hábito, ao que se vê transatlântico, de tossir em sociedade. Em casa ou na rua, nas missas e nas procissões, nos velórios também, como no teatro, no cinema, nos corredores e antecâmaras dos edifícios públicos ou privados, pigarreava-se muito mais do que hoje. Ao ponto de as repartições do Estado, como os cafés e até alguns restaurantes, possuírem, em regra, um vaso de porcelana ou de ferro esmaltado idêntico aquele que Castro descreve. Perguntei a pessoas em condições de partilharem a minha memória se o confirmavam: «É verdade, nunca tinha pensado nisso! Mas lembro-me, sim, daqueles momentos de convulsão incontrolável!»

Se retirarmos os espectáculos de ópera e os concertos para quartetos de cordas, ou as tomadas de posse, agora já em momento algum se encontram com facilidade acessos colectivos dessa natureza. Especulando um pouco, que é para isso que aqui estamos: presumo que se trataria de uma moda, de uma «prática costumeira», como dizia alguém. Ou então de uma forma subliminar de dar a volta ao apertado controlo social e às limitações impostas pela censura. Em democracia, felizmente, só pigarreia quem precisa. E quando lhe apetece. Ou pelo menos deveria ser assim.

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