Sancho não gosta de utopias

Sancho
«Já te disse, Sancho – respondeu Dom Quixote -, que sabes pouco em matéria de aventuras.» Certos dias, certas vezes, o realismo dá nojo. Resposta irreflectida perante a atitude prevalecente, que recusa conceber aquilo que não é possível tocar. O que se não vê, embora possa estar ali, a dois passos da estrada abandonada, na vastidão nocturna da estação secundária, no recanto semi-esquecido do jardim degradado. Como por detrás dos rostos fechados, vítreos, língua escondida, maxilares tensos, que passam por nós logo pela manhã. Sabemos como os simples não olham senão o visível, o que lhes delimita o raio de acção e os transforma em acessórios, presas fáceis do indivisível, das evidências imediatas que lhes injectam o estado de torpor. Daí a propensão que mostram para apoiarem poderes fortes, aplaudirem caciques, bajularem arrivistas, correrem atrás do óbvio. De tudo o que recorda, afinal, as suas próprias vidas, confortando-os na comunhão de uma simplicidade total que se não questiona.

Tempos houve, porém, em que essa propensão natural era contrariada, para além da resistência pontual dos inimigos congénitos do uno – os marginais, os artistas, os errantes, aqueles que sempre desconfiaram do puro poder – pelo rumor, passional, incómodo, dos programas políticos revolucionários. Que hoje, pelas praças deste ocidente sem norte, parecem ter adormecido. Realistas, as mensagens, mesmo as que se envolvem com fantasias de mudança, dirigem-se sempre aos targets eleitorais normalizados. A um povo cego de Sanchos unidimensionais. Para sempre?

    Olhares.