Coisa de argentinos?

Ainda o Che
Há poucos meses, a partir de um apontamento de Valter Hugo Mãe no blogue Da Literatura, falou-se do «mito de Che Guevara». Volto ao assunto por causa da edição nacional de Che Guevara. Do mito ao homem. Livro escrito por outro argentino, Miguel Benasayag, de passado guerrilheiro, hoje psicanalista e filósofo, co-autor do manifesto da Red de Resistencia Alternativa, que oferece uma reflexão estimulante sobre o lugar histórico e simbólico ocupado pela figura e pelas iniciativas do memorável Ernesto.

Não se trata de uma biografia – para isso temos a excelente obra de Pierre Kalfon, e, um pouco mais comprometida, a de Paco Ignacio Taibo II – nem de mais uma daquelas hagiografias que o governo de Havana faculta aos turistas ou que qualquer um de nós pode comprar na festa do Avante! Também não procura responder ao perverso fenómeno de moda que, entre t-shirts, posters, tatuagens e baralhos de cartas, volta a inscrever-se, quase universalmente, em praças, desfiles e residências de estudantes. Trata-se antes de uma reflexão, pessoal e positiva, sobre o guevarismo que sobreviveu a Guevara, tratando a personagem do Che «simultaneamente enquanto homem e enquanto imagem, ou seja, na sua dimensão mítica».

Partindo do princípio segundo o qual o guevarismo foi, desde o início, «uma maneira muito especial de fazer política, e de desenvolver o laço social porque (…) foi estabelecido sobre o princípio do contra-poder», este livro recupera, mas ao mesmo tempo supera, os episódios meramente biográficos do médico-guerrilheiro. Tudo isto sempre dentro de um território, e Banasayag vinca-o com especial cuidado, povoado pelos que desejam escapar «a este mundo do economicismo e das sociedades de disciplina onde reinam as paixões tristes», mas que integra tanto «a crítica severa da sociedade disciplinada e ordenada composta por indivíduos isolados e egoístas» como a oposição feroz «ao colectivismo, essa outra modalidade social, também construída e ordenada por indivíduos bem disciplinados». Aqui residiria aliás, em correlação com a discordância perante a dependência do modelo soviético, a origem do historicamente inegável – embora sistematicamente negado – distanciamento de Ernesto Guevara em relação às escolhas do seu companheiro de jornada Fidel Castro.

Servindo-se de uma abordagem do mundo contemporâneo e dos seus problemas, da nova realidade comunicacional, dos reequilíbrios construídos em tempos de pós-comunismo, o volume procura outorgar ao Che a dimensão de ser de excepção (mais herói do que santo, sem dúvida, mas essencialmente humano), o qual, para o bem e para o mal, teria consubstanciado fisicamente, e materializado no campo simbólico, a resistência – sem meta-históricas metas históricas – a todos os regimes e sociedades uniformes, previsíveis, baços e carcerários. Uma resistência consumada «sem despertar sonhos de escravos cheios de ressentimento, nem fantasias de poder, nem nenhuma certeza quanto a futuros paradisíacos». Resistência que resiste «sem tristeza porque, como dizia Deleuze, no fim de contas, a tristeza é sempre reaccionária».

Um Guevara, pois, que «apenas» enunciou, mais do que um caminho, uma atitude para a ligação permanentemente subversiva e criadora, sem modelos a copiar, com o quotidiano e com os outros. Um Guevara humano, falível, responsável por sacanices tramadas, como todos os humanos. Insatisfeito, sempre, tal como todos nós podemos ser. Exemplo apenas porque estímulo. E pouco mais. Talvez por isto, há pouco tempo, uma inscrição anónima anunciava numa parede de Buenos Aires: «Tenho no meu quarto um poster de cada um de vocês. O Che»

Três pequenas notas mais sobre aquilo que VHM escreveu:

1) Uma banalidade sobre a crítica da violência: a guerra de guerrilha possui, como todas as guerras, os seus horrores e também a sua legitimidade. A execução de alguém, mesmo num acto de guerra, é sempre um gesto extremo, terrível. Mas o gesto guerrilheiro jamais se fez com uma flor na mão. Foi cruel e assassino, sim senhor, como brutais e impiedosas foram as ditaduras que enfrentou.

2) Sobre a homofobia do Che: Ernesto era um argentino típico dos anos 1950, mulherengo, sedutor e dançarino, muy macho obviamente. Culturalmente resistente a uma sexualidade que se refugiava ainda nos mais impenetráveis subterrâneos. Assim a olhavam a esquerda e a direita, na altura estruturalmente homofóbicas. Outros tempos, felizmente.

3) O documentário fílmico para o qual VHM deixou um link centra-se em testemunhos de gusanos – imigrados cubanos nos EUA, marcados por um anticomunismo à Joseph McCarthy que tem sido utilizado para ampliar a base de simpatia da qual continuam a dispor Castro e o seu regime – e que serviram, alguns deles de armas na mão, o governo corrupto e repressivo de Batista. Tal não retirará alguma credibilidade aos seus comentários rancorosos?

    História.