Ratzinger, Pio IX, Estaline & Cia.

Duas notas sobre o que diz Luís Mourão a propósito de «Caricaturas – Parte 2». Claro que um papa da igreja romana não afirma aquilo que este afirmou independentemente do seu lugar. Poderíamos dizer que foi um impulso, um repente, um instante de pathos determinado pela emoção do reencontro com o lugar do erudito e do professor que fala ex cathedra. Mas não o creio: quem é dado a repentes não chega tão longe entre sotainas e cabeções, não assoma com aquele à-vontade e trajado de branco às janelas do Vaticano. Terá sido então um acto de coragem, uma forma de enfrentar o recuo das democracias perante um lado do Islão que exige cada vez mais, que aspira ao pagamento do tributo e à humilhação do infiel? Estranho, num sucessor de Pio IX, inspirador do infame Syllabus. Nunca saberemos se assim foi, pois Ratzinger jamais escreverá as suas memórias, e parece-me tão legítimo considerar a segunda hipótese quanto a primeira. No fundo, aquilo que me importou não foi propriamente o que disse Bento XVI, os motivos pelos quais o disse naquele lugar e naquele momento, mas antes a tenebrosa consideração de ele não ter o direito de o dizer.

A segunda parte do apontamento requer um exame menos apressado. Conto voltar ao assunto. Para já, apenas uma nota: LM parece-me ter, talvez por sensibilidade, ou por formação, ou por escolha, ou por tudo isto junto, um interesse particular no desdobrar dos textos, no encontro do «simples» dentro do que parece impenetrável, na multiplicidade de leituras de uma frase que na aparência parece ao vulgo como linear e absoluta. Trata-se de uma escolha que quase sempre me agrada, embora me custe aceitá-la como a única legítima, mesmo que possa ser a mais completa. Tenho-me interessado cada vez mais – observando a capacidade que o processo tem de imprimir vida útil a determinados textos – justamente pelo inverso. Pela transformação de proclamações literais em imperativos. De ideias gerais em correntes de opinião. De vulgatas – recordo uma daquelas que mais influenciaram o nosso comum destino: O materialismo dialéctico e o materialismo histórico, de Josif Vissarionovitch Stalin – em programas ou filosofias de vida. Sejam elas amáveis, apenas perturbantes, ou, como me parece ser o caso, meu deus, assassinas.

    Opinião.