Arquivo de Categorias: Democracia

Cultura da denúncia e assalto à democracia

Todos os regimes autocráticos firmam a sua autoridade no uso arbitrário da força, na eliminação da divergência e na disseminação do medo. Para o conseguirem recorrem ao que Foucault chamou os mecanismos da microfísica do poder, combinação tóxica de vigilância hierárquica e sanção normalizadora que dá corpo à disciplina. Esta foi sempre particularmente severa sob as tiranias e as ditaduras, em especial naquelas que incorporaram o complexo totalitário, capaz de impor, nas palavras de Hannah Arendt, «uma dominação permanente de todos os indivíduos em toda e qualquer esfera da vida».

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    Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Opinião

    Jornalistas… ou nem por isso

    Não apenas por ter aprendido a ler através de um jornal diário, por escrever na imprensa há mais de cinquenta anos, por ter dado aulas ao longo de cerca de uma década num curso de jornalismo de uma universidade pública, ou ainda por tomar a comunicação social como crucial para o adequado funcionamento das sociedades democráticas, tenho o maior respeito pela profissão de jornalista. Sou amigo de alguns e de algumas, e conheço muitos que o são com um J bem maiúsculo, seguindo-os sempre que posso a agradecendo o seu trabalho. Estes vivem a sua difícil profissão com grande empenho, dignidade e valor.

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      Novo pensamento único e cultura global do ódio

      Ditaduras e tiranias, seja qual for a forma que tomam ou os princípios de teor político e ideológico que as justificam, assentam no uso arbitrário da força, na supressão da divergência e na instalação do medo. Conseguem-no, num primeiro momento, recorrendo a mecanismos destinados a silenciar toda a discordância: a polícia política, uma censura férrea, o controlo dos meios de comunicação, tribunais obedientes ou leis antidemocráticas que excluem ou controlam o voto livre, o pluralismo e o exercício da crítica. São estes os instrumentos habituais de imposição de uma ordem única que se crê eterna e se pretende incontestada. Porém, para quem os promove, eles ainda são insuficientes, sobretudo em sociedades cada vez mais complexas e dinâmicas.

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        O 25 de Abril – ontem, hoje e amanhã

        A data do 25 de Abril (escrito sempre com maiúscula) transporta consigo uma profunda carga simbólica. Não apenas por evocar o dia fundador da nossa democracia, mas por integrar também uma memória da longa e heróica resistência ao fascismo, da luta pela liberdade de viver e de opinar, do combate pela dignidade dos direito fundamentais e da esperança num país mais solidário e mais desenvolvido. A um ano de cumprir os seu quinquagésimo aniversário, permanece sem dúvida, para a maioria dos portugueses e das portuguesas, um momento fundamental de celebração e de identidade democrática.

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          Entre o «tu» e o «você»

          As formas de tratamento, como todos os processos usados para verbalizar a interação humana, mudam de acordo com o tempo e os lugares. Em Portugal sempre foram complexas, e nos Estados de língua oficial portuguesa, por vezes consoante as regiões como acontece no Brasil, essa complexidade é replicada. Em Formas de Tratamento na Língua Portuguesa, livro de Lindley Cintra publicado em 1972, descreve-se particularmente a formação, em boa parte por decreto régio da primeira metade do século XVIII destinado a realçar as hierarquias, das fórmulas mais cerimoniosas. Como aquele intimidatório «Vossa Excelência» que alguns ainda utilizam. No geral e em todas as línguas, essas fórmulas tendem sempre a transformar-se, acompanhando a natural evolução vocabular e o contexto cultural e social em que esta sempre ocorre.

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            Lula e os seus equívocos

            Disse, repeti e insisto ainda: se tivesse a cidadania brasileira, teria votado Lula sem qualquer hesitação. Nas últimas presidenciais e nas anteriores, perdidas para Bolsonaro. Isto não significa que concorde com todas as suas posições, ou com muitas práticas do PT, sobretudo algumas do passado, mas que o que me aproxima dele – aquilo que dele aproxima todas as pessoas de esquerda – é muito mais importante do que o que nos pode pontualmente separar. Por isso, é com a maior satisfação que vejo as imagens da sua chegada esta sexta-feira a Portugal para uma visita de vários dias que culminará a 25 de Abril.

            Sublinho, todavia: satisfação, não entusiasmo. Uma reserva que se deve a posições recentes sobre política internacional que me parecem muito erradas e mesmo nocivas. A mais comentada refere-se à culpabilização da Ucrânia, e dos seus aliados ocidentais, pela guerra de invasão e destruição levada a cabo pela Rússia. Mas outra, menos referida nas notícias, é ainda pior, e diz respeito ao que proclamou em Pequim: a inscrição do Brasil numa «nova ordem internacional» que tem a ditadura chinesa e a tirania russa como eixo. Uma escolha inaceitável para um defensor da liberdade e dos direitos humanos.

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              Anonimato e cobardia

              Até a situação se encontrar esclarecida, não comentarei publicamente em detalhe o caso relacionado com o CES, do qual sou investigador sénior desde janeiro de 2002. Tenho uma posição sobre ele e sobre pessoas envolvidas, mas não me parece que neste momento a minha perspetiva acrescente algo de positivo a um processo entretanto objeto de inquérito. Não posso, porém, deixar de manifestar repulsa pela forma como várias pessoas que se afirmam investigadores/as do mesmo Centro – umas sê-lo-ão, outras são ou foram apenas colaboradores/as ocasionais – estão a recorrer sistematicamente ao anonimato, do qual alguma comunicação social se está a servir profusamente para revelar isto ou aquilo, ou para acrescentar invenções e suposições, numa exibição de péssimo jornalismo sempre no sentido de agravar o alvoroço público diante de um caso sério e que merece todo o cuidado. Em democracia, onde quem possui as suas razões tem todo o direito de as exprimir e de as defender, o anonimato chama-se cobardia e deve ser alvo de desprezo. E quem dele se sirva como arma de arremesso ou para obter público também.

              Adenda (escrita cerca de 48 horas depois) – A minha referência ao anonimato não se reporta, quero deixar isto bem claro, às eventuais vítimas de assédio. Em alguns casos ele é compreensível. Refere-se, sim, às pessoas, homens e mulheres, que aproveitam a situação para, sem darem a cara e se responsabilizarem pelo que afirmam, tentarem resolver ou agravar conflitos pessoais, inimizades ou ressabiamentos.

              [originalmente no Facebook]

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                O efeito nocivo da sacralização

                Em todas as sociedades ocorrem formas de sacralização que moldam as diferentes escolhas culturais e as relações sociais. Elas tendem a tornar sagrado e a transformar em objeto cerimonial e de culto aquilo que deveria, pois é essa a sua origem e também a sua finalidade, permanecer natural e essencialmente humano. Há mais de um século, a ideia de sagrado foi apresentada por Émile Durkheim como o oposto do profano, representando – ao contrário deste, que o sociólogo francês considerava um modo de intervenção do sujeito individual no mundo – um processo que afeta sobretudo a vida dos grupos, estabelecendo normas que forçam ou constrangem determinados comportamentos. Sirvo-me de dois curtos exemplos para abordar o processo e as suas perniciosas consequências.

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                  A lucidez estratégica e a cegueira tática

                  No campo da opinião política sobre o mundo em que vivemos e aquele que poderá perfilar-se mais adiante, tento sempre colocar a estratégia à frente da tática. Não significa que exclua a segunda do horizonte de propostas e de expetativas, mas que muito mal estaremos, pelo menos em democracia, se ela determinar a primeira. Dito isto de uma forma mais clara: o protesto e a reivindicação, bem como os programas eleitorais, ainda que fundados em situações concretas, devem sempre subordinar-se a objetivos de médio ou longo prazo para a vida da comunidade da qual emergem, não indo atrás apenas daquilo que parece urgente e «popular». Por isso mesmo, ainda que considere justas determinadas propostas, não as sigo, ou pelo menos não as tomos forçosamente como prioritárias e inegociáveis, se forem desfavoráveis ao cumprimento desses objetivos. 

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                    Os dois lados da luta pela habitação

                    O movimento pelo direito à habitação tem do seu lado uma das preocupações que mais aflige a maioria dos cidadãos e das famílias. Ela é transversal à história portuguesa recente e cinquenta anos de democracia não chegaram para a solucionar. Para quem não possui casa própria, ou tem e está a pagá-la ao longo da vida, ou precisa recorrer ao arrendamento, a situação permanece dramática, levando a que muitos não tenham casa condigna, ou a que os seus custos determinem uma vida de baixa qualidade e enormes sacrifícios. Além disso, é um facto que a generalidade dos governos pós-Abril jamais se esforçou a sério para solucionar o problema, combinando os interesses em jogo e apoiando quem mais precisa.

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                      Por uma aproximação à esquerda

                      Tendo passado pouco mais de um quarto da legislatura, todos os dias deparamos com o esforço comum da direita, apoiada em boa parte da comunicação social e na manipulação das redes sociais, para desacreditar o atual governo e dar da sua orientação uma perspetiva que pretende mostrá-lo como gestor do caos, do empobrecimento e até de algum autoritarismo. Dissemina-se, desta forma, uma imagem extremamente negativa que nem os partidos situados à esquerda do PS estão a partilhar. Projetam-se até supostas informações que vão contra dados oficiais existentes a nível europeu – onde, apesar dos fatores de crise relacionados com a guerra de invasão da Ucrânia, Portugal se encontra comparativamente bem situado -, presumido que, tendo a maioria das pessoas memória curta, já poucas recordarão os anos terríveis do governo Passos-Portas, em que vivemos empobrecidos, deprimidos e sem perspetiva, como jamais tinha ocorrido após o 25 de Abril.

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                        É preciso enfrentar os moinhos do ódio

                        A conhecida expressão «lutar contra moinhos de vento» é de há muito utilizada como metáfora da intrepidez destinada à derrota e da loucura nascida da fantasia. Alude a um dos mais conhecidos momentos do Dom Quixote de La Mancha, o romance publicado em 1605 por Miguel de Cervantes: aquele em que o sonhador «cavaleiro da triste figura» investe contra as pás dos moinhos de vento, que imaginava medonhos gigantes a vencer, tendo do ato resultado ver-se por terra com lança e armadura despedaçadas. Todavia, logo se recompôs, seguindo o seu destino, sobre o dorso de Rocinante e na companhia do escudeiro Sancho, para continuar a bater-se contra os males do mundo. Desta forma confirmando a grandeza essencial do gesto hoje designado «quixotesco».

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                          Enid Blyton e os criadores de imbecis

                          Creio que os primeiros livros com mais de cem páginas e exclusivamente de texto que li me foram oferecidos entre os oito e os dez anos, em pequenos embrulhos com três ou quatro volumes de cada vez, na qualidade de prendas de aniversário e de Natal. Como para muitos rapazes e raparigas mais ou menos da minha geração, as histórias d’Os Cinco (Famous Five), de Enid Blyton, no caso em versão traduzida, foram uma introdução ao maravilhoso da aventura e do mistério, à construção de uma distinção entre o bem e o mal, e ainda à saborosa arte de bem merendar. A série de 21 volumes foi escrita entre 1942 e 1963, trazendo consigo o mundo benévolo e inquietante do Júlio, um jovem de bom-senso, da Ana, moça desembaraçada, do brincalhão David, da Zé, a «maria-rapaz», como se usava dizer, e do imprescindível cão Tim. Sem dúvida o meu primeiro bando de heróis.

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                            «Relógios de repetição»

                            Os «relógios de repetição» para uso doméstico ou no pulso surgiram por volta de 1890, possuindo a característica inteiramente inovadora de anunciarem com clareza, de forma acústica, uma hora pré-programada, ou tocarem um alarme por duas ou mais vezes sucessivas. Por analogia, passaram a ser pejorativamente apelidadas de «relógios de repetição» aquelas pessoas com tendência para falarem sempre do mesmo assunto, ou pronunciarem constantemente, como num eco, frases produzidas por outrem. 

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                              A Coreia do Norte e a falsificação da História

                              Ao ver na AppleTV uma excelente série que percorre oitenta anos da história da Coreia, e ao procurar aferir da veracidade das inúmeras referências históricas, dou de caras com um facto poderoso que ignorava e com uma mentira que tomava por verdade, ainda que manchada por algum exagero do qual já suspeitava. Em Pachinko, de Soo Hugh, estreada em 2022 e falada em coreano, japonês e inglês, uma saga familiar baseada no romance homónimo da escritora coreana-americana Min Jin Lee, encontra-se um cenário que reporta a relação complexa e traumática da Coreia com o Japão ao longo do século XX. O facto que ignorava tem a ver com a dimensão do domínio japonês sobre a península, exercido entre 1910 e 1945, ter sido traduzida na redução à escravatura, ou pelo menos à servidão, da quase totalidade da população local, com, níveis de repressão e de crueldade sem comparação à escala europeia.

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                                Democracia, Etc., Ficção, História, Olhares

                                Escrever ou falar sem temer, como um dever

                                Mesmo fora do campo de trevas, hoje maioritário à escala planetária, das ditaduras ou das «democracias musculadas», vivemos tempos difíceis para a liberdade de opinião. Não se trata de um problema novo, pois ela sempre incomodou aqueles que procuram impor aos demais as suas razões e a sua vontade, mas hoje tem novos contornos. O que nesta altura distingue as atuais das situações do passado de assalto à liberdade é esta ser frequentes vezes atacada ou diminuída por quem tem o dever de a utilizar e de a defender. É o que acontece com muitas das pessoas a quem as redes sociais conferiram uma voz que até há poucos anos jamais sonharam deter, utilizando esta possibilidade, não para divulgar informação fidedigna, além de opiniões sinceras e justificadas, assumindo a diversidade e aceitando o contraditório, mas para disseminar a mentira, a ignorância e o ódio.

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                                  O meu 11 de março: uma memória

                                  11 de março de 1975, data sobre a qual se completam hoje 48 anos, corresponde, como sabe quem na época já tinha razoável tempo de vida ou quem estudou alguma coisa sobre a a nossa história recente, ao dia no qual, iniciada e gorada a tentativa de golpe de Estado de direita que tinha António de Spínola como «cabeça de cartaz», a revolução portuguesa se radicalizou. Superando anteriores hesitações, passou-se então à ocupação de muitas empresas e propriedades rurais, bem como a um processo acelerado de nacionalizações, incluindo a da banca. Dando-se também início a uma fase da revolução na qual o socialismo foi definido como meta por quase todos os partidos democráticos. Ao ponto de a nova Constituição a ter integrado logo no artigo 2º.

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                                    A última coluna de opinião de António Guerreiro é sobre o fenómeno woke. Como sei que muitas pessoas cultas e informadas não sabem do que se trata – nem toda a gente pode estar permanentemente atenta à infinita e cada vez mais rápida renovação dos léxicos – faço copy-paste do primeiro parágrafo do artigo da versão portuguesa da Wikipédia, inevitavelmente sintético e limitado

                                    «Woke, como um termo político de origem afro-americana, refere-se a uma perceção e a uma consciência das questões relativas à justiça social e racial. O termo deriva da expressão do inglês vernáculo afro-americano “stay woke” (em português: continua acordado ou desperto), cujo aspeto gramatical se refere a uma consciência contínua dessas questões. No final da década de 2010, woke foi adotado como uma gíria mais genérica, amplamente associada a políticas identitárias, causas socialmente liberais, feminismo, ativismo LGBT e questões culturais (…). O seu uso generalizado desde 2014 é resultado do movimento Black Lives Matter.»

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