Kitsch, democracia e o Dia da Mulher

Tbilisi, Georgia. Fot. David Mdzinarishvili/ Reuters

Um dos inimigos da democracia é o kitsch. O conceito designa a categoria de objetos ou práticas vulgares, de mau gosto, sem substância para além da sua forma híbrida, que reproduz sem critério referências de uma cultura mais sólida. Para Umberto Eco, é um «meio de afirmação cultural fácil, adotado por um público que se ilude, julgando consumir uma representação original do mundo quando, na verdade, goza apenas de uma imitação secundária da força primária das imagens». Encontra-se associado ao consumo de massas, pois é neste domínio que a propaganda e a manipulação da informação mais facilmente se impõem, reduzindo as possibilidades de escolha do cidadão comum.

Representa também uma supressão do sentido crítico, estendendo-se a áreas distintas, das artes plásticas e da criação literária ao espetáculo, à propaganda, à publicidade, à religião, à moda, ao erotismo. E também à política, onde é particularmente pernicioso quando se impõe como modelo. Se Theodor Adorno e Max Horkheimer já na década de 1940 haviam criticado o papel da indústria cultural, então emergente, como fator de degradação do gosto e como instrumento de manipulação das massas, a demagogia política soube apropriar-se deste processo. Simplifica a sua mensagem e dissolve o papel da ideologia, usando o kitsch como estratégia de entorpecimento e de sedução.

Em Portugal, um exemplo desta estratégia sucede agora com o Dia Internacional da Mulher. Nos últimos anos, o 8 de Março, celebrado desde 1909 para apelar ao combate pelos direitos sociais das mulheres e pela igualdade – evocando a tragédia ocorrida com 1857, em Nova Iorque, quando 130 mulheres morreram carbonizadas depois de trancadas numa fábrica de tecelagem por estarem em greve –, tem vindo a ser preenchido por uma inócua festa de «homenagem à Mulher» que recorre precisamente aos mesmos valores e símbolos que a colocam numa posição de subalternidade ou de objeto. Parte destes comportamentos advém da manipulação mercantil do evento, despido da dimensão reivindicativa e transformado num momento kitsch de consumismo ou de marketing político.

Esta situação não difere muito da rotineira celebração de outros «dias», entretanto inventados ou dos quais há uma vintena de anos ninguém se lembrava. Mas é particularmente grave quando a manipulação é proposta por instituições públicas. Não sendo único, um mau exemplo desta escolha foi dado este ano em Coimbra, com a proposta «comemorativa» da sua Câmara Municipal. Para além da distribuição mais inocente de rosas «às senhoras», integrou uma aula de zumba e uma serenata, celebração masculina da passividade das mulheres e do «eterno feminino». Uma atriz de telenovelas ofereceu ao público uma versão artística da dança do varão e foi proclamada «embaixadora» da iniciativa, enquanto as mulheres que se dirigissem a determinado espaço poderiam «desfrutar, gratuitamente, de vários serviços», como «penteados, maquilhagem, unhas de gel e massagens».

Uma mulher não precisa ser uma megera para ser emancipada ou defender os seus direitos, mas não é da sua beleza ou do seu lugar de fada do lar que se fala quando em todo o mundo se evoca o Dia de Mulher. Por isso, uma entidade como a CMC, para mais gerida por um partido da esquerda, programaticamente vinculado à valorização da cidadania e dos direitos sociais, não deveria ter organizado, no mínimo sem uma alternativa com substância, esta encenação da futilidade. Logo numa cidade onde, durante décadas, houve quem o lembrasse correndo por isso sérios riscos. A luta das mulheres, mesmo em sociedades onde as premissas jurídicas da igualdade estão formalmente consagradas, não pode ser banalizada e transformada no seu contrário por episódios como este. Uma deplorável exibição de kitsch político.

Publicado em 11/3/2017 no Diário As Beiras

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