O «lado de lá» da Cortina de Ferro

Anne Applebaum

Não existe história imaculada de ideologia. A par da efetiva impossibilidade de um reencontro total com o passado, ou da recuperação do que aconteceu sem a interferência dos padrões de perversão da memória, este é um dos motivos que torna irrealizável um conhecimento histórico completamente objetivo. Todavia, tal não implica uma subjetividade total: existem processos de aferição e de comparabilidade que separam o historiador, sempre em demanda de indícios materiais ou imateriais que sustentem a sua observação, do mero charlatão ou do vendedor de passados. Por este motivo, para que possa ser aceite e reconhecido pelo trabalho que desenvolve, as marcas de subjetividade do historiador devem encontrar-se menos na manipulação da informação do que no silenciamento de determinados aspetos. Ele não pode pôr-se a inventar, embora possa sempre desviar o olhar daquilo que menos lhe agrada. Foi o que fez, em particular na última obra – A Cortina de Ferro. O fim da Europa de Leste*, saída no início do ano passado e agora traduzida pela Civilização –, Anne Applebaum, a antiga jornalista polaco-americana, hoje reorientada para a história e a ciência política, autora do aclamado Gulag: Uma História, saído em 2003.

Neste livro perturbador, Applebaum faz jus ao seu alinhamento marcadamente conservador. Centra-se, por um lado, no im­pac­to junto da população ci­vil que a es­ta­li­ni­zação rápida e bru­tal teve na construção dos novos Estados do «socialismo realmente existente» saídos do termo da Segunda Guerra Mundial, revelando, com o apoio de um número apreciável de documentos, muitos deles ainda há pouco tempo indisponíveis, o modo como as novas autoridades, recorrendo invariavelmente a processos de pressão, calúnia e golpismo, instauraram en­tre os cidadãos a pa­ra­noia, a suspeita e o me­do. A obra é muito útil, particularmente quando, mergulhados na crise atual do capitalismo, vivemos um tempo de branqueamento dos regimes autoritários que ruíram com o Muro de Berlim. Oferece muita informação, sem dúvida, alguma espantosa. Mas ao mesmo tempo omite dois aspetos sem os quais a emergência e o trajeto daquelas experiências permanece em boa medida incompreensível: não considera a ab­so­lu­ta inoperância e corrupção dos re­gime­s an­te­rio­res a 1939, muitos deles partidários de Hitler, e desqualifica a propensão de parte significativa das populações daquelas áreas para considerarem a utopia pacífica e igualitária, para a qual as tropas do Exército Vermelho pareciam ter aberto o caminho, como uma possibilidade de futuro. Os regimes pré-1989 da Europa de Leste não saíram do nada, nem foram construídos ou se mantiveram sem o apoio de parte significativa das suas populações. Ou pelo menos sem a sua indiferença.

* O título da edição portuguesa contém um erro grave de tradução. Crushing (no original) significa esmagamento e não fim ou queda.

    Ensaio, História, Leituras, Memória.