O monstro dócil

A tralha

Um post escrito há quatro anos e recuperado do arquivo. E não é que, ao relê-lo, nada parece ultrapassado?

Em Il Mostro Mite, «o monstro dócil», um livro publicado em Itália pela Garzanti, o linguista e ensaísta italiano Raffaele Simone procura mostrar o que separa o ethos tradicionalmente «sacrificial» da esquerda daquele assumido por uma direita que, ao contrário do que acontecia no passado, toma hoje o partido do consumo, do luxo, do despesismo e da poluição desgovernada. A Itália de Berlusconi esteve na vanguarda da mudança, uma vez que terá sido aqui que começou a afirmar-se essa direita do divertimento, da frivolidade, da comunicação televisual, do menosprezo pela arte e pela cultura, da procura desenfreada da riqueza e do prazer. Pelo contrário, a esquerda tem-se conservado essencialmente avessa à lógica consumista, apontando para uma sociedade austera, de renúncia, de regresso ao mínimo. Entretanto algo mudou e a nova sociedade globalizada encontra-se dominada por um padrão de cultura afável, envolvente, consumista, indiferente à renúncia e ao altruísmo. É precisamente este «il mostro mite», a face sorridente e todavia sinistra e prepotente da nova direita que em alguns países da Europa vem empurrando o conjunto da esquerda para um beco aparentemente sem saída.

Algo aqui parece inevitável. Se à direita pouco importa alterar a organização injusta do mundo, valendo pois fruí-lo tanto quanto for possível, já a esquerda, principalmente aquela que não se vendeu ao realismo político e à ordem neoliberal, reconhece as desigualdades e tem como cenário de esperança e motivação essencial para o seu combate, uma expectativa de mudança. Não pode por isso deixar de viver com sofrimento e inconformismo a desigualdade, a disparidade de oportunidades, o exercício arbitrário do poder, o crime como fonte de autoridade e de privilégios. Essa é a sua condição natural, que não pode repudiar mesmo quando em momentos específicos assume «a festa» como espaço para recuperar energias e prosseguir o combate. Mas é justamente aqui que Simone encontra um problema (ele não projeta a cura, faz apenas o diagnóstico): enquanto a esquerda ortodoxa tenta conservar essa vertente sacrificial que desconfia dos prazeres e coloca «a luta» à frente da procura de uma alternativa, os socialistas no poder, afáveis e sorridentes coveiros do Estado-Providência, cientes da dificuldade congénita de manterem as suas posições sem concessões aos ímpetos lúdicos e consumistas do povo que os elege, assumem um rosto superlight, que os revela cada vez mais como uma fraca cópia dessa direita «divertida» que anuncia a desigualdade como Deus e o «monstro dócil» como seu profeta.

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