As cartas de Piteira

Nas evocações da resistência à ditadura e dos primeiros tempos pós-Abril raramente tem sido dado o justo destaque à vida desinquieta, à intervenção militante e à atividade intelectual de Fernando Piteira Santos (1918-1992). Todavia, ele foi uma das figuras-chave da história do país no século XX, como resistente, intérprete da vida nacional, ou, nos últimos anos de vida, influente «reserva da República». Militante contra a ditadura desde a juventude, Piteira foi membro do Comité Central do PCP entre 1941 e 1950, ano em que foi expulso a pretexto de uma falsa acusação de delação. Antifascista, oposicionista ativo, conheceu por isso os cárceres da ditadura, tendo sido preso por três vezes. Em 1961 colaborou na tentativa de assalto ao Quartel de Beja, vendo-se por esse motivo forçado a passar à clandestinidade e depois ao exílio em Argel, de onde só regressou após a queda do regime. Em 1974 foi Director-Geral da Cultura Popular e Espectáculos, criando e dirigindo depois os Centros Populares 25 de Abril. Em 1977 foi fundador da Fraternidade Operária, criada por dirigentes e militantes do PS descontentes com o rumo político tomado então pelo partido. Professor da Faculdade de Letras de Lisboa, foi ainda, entre 1975 e 1989, diretor do Diário de Lisboa.

O que Devo a Mim Próprio a Memória da Minha Vida, organizado por Maria Antónia Fiadeiro, nos oferece de novo, como contributo para melhor conhecer a sua personalidade, o seu trajeto e o seu tempo, é um conjunto de cartas pessoais, retiradas do arquivo da família, reveladoras da dimensão afetiva, e de uma persistência fora do comum no campo das convicções, até agora desconhecida de quem, da «piteiral figura» – como em certos meios era habitualmente conhecido – apenas retinha o lado mais formal e público. Trata-se de correspondência inédita, redigida na prisão, na clandestinidade e no exílio, que nos devolve um pouco da intervenção de Piteira Santos no Portugal amordaçado que fomos, mas que permite também destacar uma dimensão mais silenciosa e privada. Embora nem por isso menos marcada pelo medo, pela combatividade e, como não poderia deixar de ser para quem escolheu levar tal vida de risco e entrega, por uma enorme esperança.

Maria Antónia Fiadeiro (coord.), Devo a Mim Próprio a Memória da Minha Vida. Fernando Piteira Santos. Campo da Comunicação. 156 págs. Nota de leitura publicada na LER de Abril de 2013.

    História, Memória.