Como arruinar um projeto em 144 páginas

Na História Politicamente Incorreta do Portugal Contemporâneo (De Salazar a Soares), editada há pouco pela Guerra & Paz, Henrique Raposo, o cronista do Expresso também «licenciado em História e mestre em Ciência Política», considera existir um padrão dominante no interior da historiografia nacional que é preciso meter na ordem. Este funcionaria como uma espécie de vírus, desvirtuando e falsificando o conhecimento que temos do século passado a partir da perspetiva vitoriosa da esquerda. Considerando-a intrinsecamente nefasta e objetivamente falsa, propõe-se então contribuir para atenuar essa influência. Resume-a neste livro através de um complexo de «mitos» que pretende questionar. Identifica essencialmente cinco: o de Salazar como mera criatura da Igreja católica, o de um Mário Soares sem o qual Portugal de facto não teria entrado na Europa, o do Estado Novo vergando os portugueses à irrevogável pobreza, o de uma esquerda que vez alguma fora «colonialista», e, por fim, o da hegemonia cultural da mesma esquerda como tendo começado antes do 25 de Abril e fechado as portas logo no final de 1975. A narrativa de Raposo procura negar radicalmente estes juízos, anunciados como fábulas.

Para ele, afinal, tudo teria acontecido ao contrário: o ex-seminarista de Santa Comba consumindo boa parte do seu escasso tempo em confrontos com a hierarquia católica, um Portugal estado-novista assumidamente cosmopolita e aberto à Europa, o regime de Salazar e Marcello como materialmente próspero e, a bem-dizer, socialmente justo, uma Oposição furtivamente empenhada em conservar o Império, e, por fim mas onde bate o ponto, uma esquerda que continuou a dominar culturalmente o país mesmo após a derrota política sofrida no aziago dia 25 de Novembro. Uma supremacia que, para Raposo, no fundo se manteve desgraçadamente intocável até hoje. Só que esta argumentação tem um defeito de origem: procurando apoiar-se em dados e factos que neguem aqueles supostos mitos, fá-lo contra toda a historiografia credível produzida, ignorando deliberadamente a imensa informação sobre estes temas já publicada em estudos exaustivos, criteriosos e academicamente aferidos. Para não falar das fontes que ignora. As escolhas e as gritantes omissões da bibliografia e a recorrente manipulação do ónus da prova são aliás ilustrativas das suas intenções, dos seus limites e, claro, da falta de honestidade historiográfica e intelectual da qual aqui faz prova.

Fá-lo, no essencial, para elaborar os seus próprios mitos, já antes propostos aliás, nos anos que se seguiram ao 25 de Abril, por uma direita empenhada em negar o seu próprio passado e em inventar uma genealogia comportável com a sua aceitação pelo regime democrático e pelas suas regras. Mas isso, com toda a certeza, o autor desconhece ou não o interessou, uma vez que tal contrariaria a «novidade» que imagina ter produzido. A partir de indícios, de fragmentos, de pequenos sinais, de factos dispersos, de episódios tocados de raspão, Raposo tenta reconstruir um edifício, o da nossa história recente, que erguido desta forma só pode ruir ao menor abalo ou golpe de vento. Como acontece nas construções nas quais se poupou, ou se aldrabou, no desenho do projeto e na escolha dos materiais. É bom que, a quem por distração ou curiosidade vá atrás do teor aparentemente provocatório do título deste livrinho, tal embuste seja mostrado. E depois, como felizmente entre nós não existe censura – nem mesmo a «benévola» do tempo de Salazar – que essas pessoas desperdicem o seu rico dinheiro naquilo que muito bem entendam. Mas pelo amor da santa, não tomem isto por História. É que não é mesmo.

[a propósito]

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