A História e as escolhas de Israel

Tony Judt

Quem se interessa um pouco pela história recente, ou por aquela que com esta se relaciona, conhecerá provavelmente, pelo menos de ler alguns comentários a propósito do tema, as teses revisionistas, inevitavelmente polémicas, do historiador Shlomo Sand, um descendente de judeus polacos sobreviventes de Auschwitz que é, entre outros empregos académicos, professor na Universidade de Tel Aviv. O seu Como o Povo Judeu foi inventado, acaba de ser publicado em Portugal, numa edição da Figueirinhas, e traz-nos de volta ao essencial da tese que defendeu e o título desta obra limpidamente revela. Sand procura aí provar que o povo judeu jamais existiu como «raça-nação» com uma origem comum, resultando antes de uma mistura de grupos muito diferentes que, em diversos momentos da história foram aderindo à religião judaica. O que, a ser aceite, pode reduzir parte da legitimidade histórica que fundamenta a existência de Israel. Por vezes o seu trabalho – discutível, sem dúvida, mas não negligenciável – tem sido aproximado daquele produzido pelos «historiadores» que desenvolveram teorias negacionistas a respeito do Holocausto, considerando-o essencialmente uma «invenção dos judeus», mas essa é uma ideia de modo algum partilhada por Sand.

Uma terceira via é, entretanto, a protagonizada por aqueles que entendem, de forma crítica, que a contínua evocação do horror do Holocausto tem servido muitas vezes de álibi para legitimar as políticas crispadas, agressivas e de direita impostas na sua região por Israel, as quais têm impedido o país de enveredar de uma forma aberta, sincera e consequente por uma via de franco diálogo para procurar resolver o «problema palestiniano». Vale a pena, para percebermos melhor este argumento, ler (ver mais abaixo) o que escreveu Tony Judt, o historiador britânico, filho, neto e bisneto de judeus, num dado passo de Pensar o Século XX (Edições 70), a obra que concluiu em meados de 2010, poucos dias antes de uma morte trágica mas já anunciada. Convirá recordar, porque para o caso isso é relevante, que Judt defendeu a solução política do conflito israelo-palestiniano através da construção de um estado único e multiétnico, o que lhe trouxe dissabores vários junto da comunidade judeo-americana. Nada de surpreendente, porém, se for tido em linha de conta o percurso pessoal e as posições politicamente marcadas pela defesa do socialismo, da esquerda e da democracia, que foi mantendo sempre ao longo da vida.

Desde Ben-Gurion, a política israelita insistiu muito explicitamente na alegação de que Israel – e por extensão todo o mundo judeu – continua vulnerável a uma repetição do Holocausto. A ironia, claro, é que Israel constitui em si uma prova poderosíssima do contrário. Mas se aceitarmos, como decerto devíamos, que nem os judeus nem os israelitas enfrentam um extermínio iminente, então somos forçados a reconhecer que o que está a acontecer é o aproveitamento político da culpa e a exploração da ignorância. Como estado, Israel – a meu ver, irresponsavelmente – explora os medos dos seus cidadãos. Ao mesmo tempo, explora os medos, as memórias e as responsabilidades de outros estados. Mas, ao fazê-lo, arrisca-se, com a passagem do tempo, a consumir o próprio capital moral que lhe permitiu exercer essa exploração.

Que eu saiba, ninguém na classe política israelita – e com certeza ninguém no exército israelita ou na elite política – exprimiu qualquer dúvida pessoal quanto à sobrevivência de Israel: certamente pelo menos desde 1967 e, na maioria dos casos, também não antes. O medo de que Israel pudesse ser «destruído», «varrido do mapa do mundo», «deitado ao mar» ou de qualquer outro modo sujeitado a algo remotamente semelhante a uma repetição do passado não é um medo genuíno. É uma estratégia retórica politicamente calculada. Talvez não seja injusta: percebe -se a utilidade, para um pequeno estado numa região turbulenta, de sempre que possível afirmar a sua vulnerabilidade, indefensabilidade e necessidade de compreensão e apoio do estrangeiro. Mas isso não explica a razão de os estrangeiros morderem o isco. É evidente que a explicação rápida é isso nada ter que ver com as realidades do Médio Oriente contemporâneo mas sobretudo com o Holocausto.

(…)

Costumávamos dizer que um sionista é um judeu que paga a outro judeu para viver em Israel. A América está cheia de sionistas. Os judeus americanos têm um problema de identidade muito invulgar: são uma minoria «étnica» substancial, bem implantada, destacada e influente num país onde as minorias étnicas têm um lugar particular e – em muitos casos – afirmativo no mosaico nacional. Mas os judeus, singularmente, são uma minoria étnica que não se pode descrever exatamente assim. Falamos de ítalo-americanos, hispano-americanos, americanos nativos, etc. Esses termos adquiriram conotações nitidamente positivas para as pessoas que descrevem.

Mas se alguém falasse de «judeo-americanos», seria imediatamente suspeito de preconceito. Os próprios judeus americanos não usariam certamente o termo. E todavia eles são judeus, é claro, e americanos. Então o que os distingue? Não a sua religião, obviamente, com a qual muitos já perderam o contacto há muito tempo. À exceção de uma minoria atípica, os judeus americanos não têm familiaridade com as práticas culturais judaicas tradicionais. Não têm uma língua privada particular ou herdada – a maioria dos judeus americanos ignora o iídiche e o hebraico. Ao contrário dos americanos de ascendência polaca ou irlandesa, não têm recordações nostálgicas da «terra ancestral». Logo, o que os une? A resposta, em termos muito simples, é Auschwitz e Israel.

Auschwitz representa o passado: a memória do sofrimento de outros judeus noutros lugares, em outros tempos. Israel representa o presente: uma realização judaica na forma de um estado militar agressivo e confiante – o anti-Auschwitz. Com o estado judaico, os judeus da América podem criar um rótulo de identificação e uma associação positiva sem terem de ir viver para lá, de pagar lá os seus impostos ou de qualquer outra forma trocar de nacionalidade.

Parece-me haver algo patológico nesta transferência de autodefinição contemporânea para gente muito diferente, de outros tempos e lugares. Não pode com certeza ser saudável para os judeus americanos identificarem-se tão afetuosamente com as vítimas judaicas do passado, ao ponto de acreditarem – como tantos – que a melhor razão para manter Israel em atividade é a probabilidade de que outro Holocausto esteja ao virar da esquina. Será que ser judeu exige prever uma repetição de 1938 para onde quer que nos voltemos? Se exige, então suponho que faça mesmo sentido oferecer apoio incondicional a um estado que declara esperar algo desse género. Mas não é bem um modo de vida normal.

    Atualidade, Democracia, História.