Bibliocrime

Existe quem defenda que roubar livros não é crime, uma vez que os bens culturais devem dispor de trânsito livre, universal e gratuito. Ressalvando os casos em que o ladrão tem em vista a raridade bibliográfica que pode seguramente valer uma boa maquia, trata-se de um produto do qual realmente só se apropria sem passar pela caixa registadora quem é um real connaisseur ou dele precisa mesmo. Rouba-se então pelo gosto, para alguns pela necessidade, de ler. Ou então pela compulsão bibliófaga. Rimbaud roubava livros, e Genet, como não podia deixar de ser, também o fazia. Sei de cidadãos, alguns de perfil público, que em dado momento das suas vidas, por aperto financeiro ou gosto do risco, se dedicaram com tenacidade e bom proveito a essa pequena mas nobre arte. Que fiquem descansados em relação aos efeitos casualmente perniciosos da minha memória, pois não sou delator. Além disso, e para ser sincero, não estou em condições de poder garantir não ter eu próprio sucumbido no passado à cobiça, deixando-me envolver – devido provavelmente às más companhias – no emocionante submundo da transgressão associada ao consumo de produtos brochados ou encadernados.

Falo disto porque conheci por estes dias mais chegados o conde – o nome, verdadeiro, é todo um programa – Guglielmo Brutus Icilius Timeleone Libri Carucci dalla Sommaja (1803-69). Italiano de Florença, notabilizou-se como matemático ao publicar um tratado com mais notas de rodapé do que texto corrido. Foi em função dessa projecção tão laboriosamente granjeada que pôde obter uma cátedra no Collège de France e foi depois nomeado «Secrétaire de la Commission du Catalogue général des manuscrits des bibliothèques publiques» de toda a nação francesa. Ao assumir o prestigiado cargo, porém, o caldo começou a entornar-se: o seu descontrolado amor pelos livros e manuscritos era tão grande que em breve percebeu querer todos eles para si. Em 1848, viu-se pois na contingência de fugir para Inglaterra para não ser preso por se apropriar ilicitamente dos exemplares, alguns raríssimos, que lhe competia preservar e aos quais ia conseguindo deitar a mão. Na fuga, levaria consigo 30.000 deles em 18 contentores de madeira. Julgado à revelia, viria a ser condenado in absentia a dez anos de prisão, pelo que resolveu deixar-se ficar quietinho por Londres, trabalhando ainda durante alguns anos… na British Library. Presumindo-se, embora sem provas, que durante os anos em que aqui vividos os actos ilícitos determinados pelo seu vicioso amor não tenham terminado. Mas quem o poderá condenar se é precisamente por causa dele que ganhou a imortalidade e hoje o recordamos?

| reposição; publicado inicialmente em 24/7/2011

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