Consoada em Israel, Natal em Gaza

Gaza

Tem sempre algo de cegueira a atribuição do exclusivo da culpa aos políticos e aos militares israelitas, esquecendo que a violência se tem desenvolvido num contexto de guerra onde não são simples, e muito menos transparentes, as orientações estratégicas e os processos de actuação. Como se o combate fosse apenas entre judeus inequivocamente «maus», medidos todos pela mesma bitola, merecendo continuar a penar, errando de terra em terra até ao fim dos tempos, e os árabes, acantonados nos estados despóticos da região ou nos territórios autónomos, adeptos da causa palestiniana e «bons» por natureza. Como se a solução política e histórica do conflito israelo-palestiniano não passasse por um entendimento obrigatório, ainda que distante e com toda a certeza difícil de obter, entre os moderados que, de um e do outro dos lados, não apelam liminarmente ao extermínio do «inimigo». O anti-semitismo tem muitas caras e uma delas passa pelo menosprezo do sistema democrático que rege o Estado de Israel desde a sua fundação diante de uma dimensão, supostamente «popular», mais «democrática», das correntes próximas do radicalismo religioso – pois o velho «socialismo islâmico» está morto e enterrado – que praticam a suprema honra de combaterem de armas na mão, ou de bombas à cintura, o amaldiçoado judeu e os seus aliados ocidentais. Mas as coisas, felizmente, não são redutíveis a análises monoculares que colocam o fígado acima da inteligência.

Por isso tem pouco de honesta a leitura do mortífero ataque de hoje lançado pelos israelitas sobre a faixa de Gaza – controlada com punho de ferro pelo Hamas após expulsão da Fatah, é bom que se não esqueça – omitindo ao mesmo tempo, declaradamente, que esta ocorreu após o bombardeamento de diversas cidades israelitas por parte do mesmo grupo radical, causando também um elevado número de vítimas. Tratou-se de um acto de represálias, evidentemente. Condenável sem dúvida, como foi condenável o bombardeamento sobre civis lançado pelo Hamas. Mas natural em estado de guerra, que é aquele que se vive na região. A solução, nestas circunstâncias, como já Yasser Arafat e Yitzhak Rabin, contra muitos dos seus, haviam percebido, encontra-se pois numa demanda efectiva da paz. E não na justificação da «bondade» natural de um dos lados em guerra em prejuízo da «maldade» absoluta do outro.

Estranho ainda é falar-se – como o fizeram, uma vez mais, diversos jornalistas e alguns bloggers – da malévola exacerbação do conflito, por parte dos israelitas, «em plena época de Natal». Como se não estivéssemos a falar de um universo cultural essencialmente composto de árabes e de judeus que pouca importância atribuem ao menino nas suas palhinhas. Uma lapalissada que parece necessário repetir como uma mantra, pois todos os anos é esquecida. Quem desencadeou a violência quis, obviamente, provocar os falcões do exército israelita, que toda a gente sabe terem dedo fácil no gatilho e reagirem seguindo a lógica do «dispara primeiro e pergunta depois». E quis ainda desafiar o ocidente, de matriz cristã, que tende hoje a fomentar uma solução de conciliação – e, provavelmente, mais tenderá ainda a promovê-la com o início da intervenção política de Barack Obama – com uma declaração formal e bastante ruidosa de princípios e de intenções. Por isso escolheu uma vez mais esta época do ano, supostamente pacífica, na qual se ouve melhor o estrépito da metralha. Uma vez mais também, houve por estes lados quem mordesse rapidamente o isco.

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