Torga e o PS

Nunca me agradou a poesia de Miguel Torga. E talvez devesse dizer o contrário, se bem que por razões extra-literárias: aos oito anos operou-me às amígdalas e foi muito paciente comigo (embora horrivelmente vestido de otorrinolaringologista do Largo da Portagem), tempos depois fui seu vizinho na Praceta Fernando Pessoa (onde mantive o meu último quarto de estudante), e vivo há décadas em Coimbra, em cujo panteão simbólico Torga apenas é batido por Isabel de Aragão, a beata e ilusionista Rainha Santa, e pelos infelizes Pedro e Inês. Para além disso, sempre simpatizei com a sua figura simples e solitária. Mas a poesia que publicou não me agrada. Tal como jamais gostei de ver o poeta servir de muleta a políticos à procura de um «toque de cultura» no seu seco discurso público, parecendo-me também bastante despropositado que alguém despojado de provincianismo – ou de uma certa dose de ignorância – o possa tomar por «um dos maiores poetas do século XX». Questões discutíveis de paladar e de idiossincrasia, sem dúvida.

O que já não me parece discutível é a desconsideração que foi a ausência de qualquer responsável nacional do PS, ou do seu governo (a Ministra da Cultura, por exemplo), nas comemorações do centenário do nascimento de Torga que hoje tiveram lugar em Coimbra e em S. Martinho da Anta. António Arnaut considerou a ausência «uma falta grave, uma omissão grave de cumprimento de um dever cívico.» Tanto mais grave quanto o poeta, apesar da sua conhecida aversão a participar em actos públicos, foi nas últimas décadas de vida um importante – e imprescindível – compagnon de route dos socialistas, servindo também a sua palavra, frequentemente, de muleta do discurso dos seus dirigentes (incluindo-se nestes o seu actual secretário-geral e primeiro-ministro). Mas talvez esta atitude até tenha sido coerente: poderá tratar-se apenas apenas de um passo mais no abandono das referências matriciais do Partido e na sua gradual conversão em organismo técnico e gestionário, para o qual as artes e as letras são apenas acessórios. Se, por um destes dias, em cerimónia do Dia de Portugal ou numa sessão solene da Assembleia da República, algum insigne governante ou deputado citar à propos uma frase de Joe Berardo, não ficarei pasmado.

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