A preto e branco e às cores

Alexandre O'Neill

Podemos detectar, do imediato pós-Abril à actualidade, uma certa tendência para desenhar o Estado Novo a preto e branco. Os principais e quase sempre involuntários responsáveis por este estado de coisas são muitos dos que lhe sobreviveram e que dele nos vão legando uma memória selectiva. Fixam-se principalmente na evocação dos momentos mais sonoros, ou mais dramáticos, ou mais difíceis, capazes de terem deixado um inequívoco legado na vida colectiva. Ou então na experiência individual, mas de acordo com esse processo de depuração do passado que ocorre sempre que cada um de nós ascende do pessoal, e único, ao domínio das generalizações encaixadas na forma de máximo denominador comum. E rejeitam tudo o resto. Alguns historiadores incorrem no mesmo lapso, ao aceitarem apenas a leitura do salazarismo construída na tradição da esquerda – da mais à menos ortodoxa – que muitas vezes procurou integrar a investigação em interpretações que a antecediam. O mesmo, aliás, se passou com a historiografia conotada com a direita, a qual avalia a democracia saída da «revolução dos cravos» como um tempo de decadência e a época que a antecedeu como essencialmente gloriosa.

No entanto, à medida que o reconhecimento daquele período aperta a sua angular, que se ensaiam sucessivos estudos de caso, que se registam histórias de vida, ambientes, práticas e gestos que não constam das publicações sobre o período centradas na vida das elites, nem dos manuais oficiais que ensinam o salazarismo às crianças – e aqui são absolutamente centrais o testemunho oral, a correspondência privada, os arquivos individuais –, pode perceber-se que algo mais acontecia. E a época ganha outra vida. E outra cor. É essa a impressão mais vivida com que fiquei da leitura do excelente Alexandre O’Neill. Uma Biografia Literária (e pessoal) escrita por Maria Antónia Oliveira. O «Sr. Nildo», comedor voraz, fumador compulsivo, frequentador de tascas, amante de muitas mulheres e enorme poeta (praticamente desemparelhado, à época), cruza ali, com os seus amigos ou com parceiros de momento, um universo de profanação do «pequeno Portugal», de provocação do «português suave». E a experiência da boémia enquanto processo de resistência. Parte significativa de uma forma de oposição não alinhada, situada fora da vida e da luta das classes populares, «pequeno-burguesa» se se quiser – mas propedêutica da queda do regime –, que tem sido quase ignorada, e cujo eco, em larga medida apoiado em textos inéditos e testemunhos pessoais, se pode encontrar neste livro.

    História.