Do inimigo americano

Made in America
[retomando…] Como se sabe, é nas ocasiões difíceis que se mostra o melhor e o pior de nós. As emoções tolhem-nos então a consciência, falamos sem controlar as palavras, gritamos juras que reconhecemos logo serem um pouco exageradas. Diz o povo que «é do vinho!» Nessas alturas, é necessário aplicar um esforço suplementar para se evitar que o mais fundo de nós – os fantasmas, as raivas, os desejos, as expectativas – tolha os nossos actos. Infelizmente é isto que acontece com muitos dos «argumentos» de uma esquerda quase exclusivamente orientada para um espaço mítico cujos reflexos reverbera sem pensar duas vezes. O resultado é, para além do espectáculo triste de uma esclerose exposta em público, a oferta de argumentos aos sectores neoconservadores, cedendo-lhes o espaço de manobra que fora historicamente da esquerda e lhe facultara, durante décadas, a afirmação de uma efectiva superioridade moral.

Recorro, para ilustrar esta situação, a dois extractos da crónica de Constança Cunha e Sá saída no Público de hoje (citações algo longas mas necessárias): «A esquerda, naturalmente, depois de perder o seu “sol na terra” e de ter assistido à destruição sistemática dos seus principais mitos, descobriu no antiamericanismo primário, não só a sua grande bandeira, mas principalmente o seu último (e único) combate. Falhada a gloriosa aventura do comunismo e desfeitos os sonhos da ideologia, resta à esquerda aprender a viver num mundo que a contraria e escolher um inimigo que lhe restitua a identidade perdida. O resultado deste duvidoso exercício é conhecido: um delírio teórico que despreza a realidade e um moralismo sem moral que leva à defesa dos pobres e dos oprimidos e ao elogio de regimes que sobrevivem (e sobreviveram) à custa de uma imensidão… de pobres e de oprimidos.» Mais adiante, CCS refere-se a Miguel Portas, criticando o facto de este ter andado «pelos bairros destruídos de Beirute de braço dado com os heróis do Hezbolah», e lembrando que «este seria prontamente liquidado, se fosse exportado para o Irão, o principal patrocinador dos seus corajosos “resistentes”». E acrescenta: «Mas não é isso que impede este defensor da igualdade entre os géneros, dos direitos dos homossexuais e da separação entre o Estado e a Igreja de apoiar implicitamente um regime teocrático que se distingue pela violência com que trata as mulheres e pela intolerância fatal que nutre pelos homossexuais. O antiamericanismo militante, potenciado pelos erros da Administração Bush, supera qualquer tipo de incoerência e junta, na mesma causa, os mais improváveis parceiros.» Não havia necessidade de dar assim o flanco.

Publiquei há cerca de 5 anos uma pequena crónica sobre a questão do «antiamericanismo como dogma» [ver nota no final deste post], o qual justifica actos espúrios como aquele corporizado por MP (pessoa que prezo como sinal animador, espero que para continuar, de uma «esquerda que pensa» prospectivamente). Não sendo suspeito de simpatias para com as políticas de Bush, gostaria, todavia, de deixar à reflexão algumas palavras de Jean Baudrillard escritas há cerca de duas décadas atrás: «Não consigo deixar de achar que este universo completamente apodrecido de riqueza, de poder, de senilidade, de indiferença, de puritanismo e de higiene mental, de miséria e de desperdício, de vaidade tecnológica e de violência inútil, tem ar de manhã do mundo. Talvez por o mundo inteiro continuar a sonhar com ele, enquanto ele o domina e o explora.» Talvez, acrescento, por, antes ainda da revolução jacobina, ter nascido ali a «erva daninha» da melhor liberdade.

A esquerda que não integrou completamente a lógica neoliberal do sauve qui peut precisa reflectir sobre isto. Como atitude democrática, solidária e construtivamente utópica sobreviverá à usura do tempo e a esta dramática perda de capacidade para compreender o mundo de forma dinâmica e preparar os processos de mudança. Espera por uma refundação que, como todas as refundações, implica a observação dos alicerces e a eclosão de uma série de explosões. Gostaria que não fossem necessárias também umas quantas implosões.

Nota: O artigo que mencionei, publicado originalmente em 2001, encontra-se aqui em formato PDF.

    Opinião.